2.4.10

Ana Salazar, pioneira da moda

Ana Salazar Outono/Inverno 2010/11 apresentada na 34ªedição ModaLisboa (Fotografia Rui Vasco), dia 12 de Março último, no Pateo da Galé, Terreiro do Paço. Título da Colecção «Depurar o excesso» - com jóias de Valentim Quaresma -ou uma outra forma de interpretar o Barroco no universo da criadora, sobre quem deixo aqui um texto publicado em Dezembro de 2008 na revista Faces de Eva 20, no interior da secção «Pioneiras» (edição da Colibri e universidade Nova de Lisboa)

Uma das nossas mais recentes conversas sobre o seu pioneirismo na moda e em Portugal levou-nos até à capital londrina e a esses anos muito marcantes do início da década de 70: «foram anos muito giros em Londres, talvez comece aí esta história...com os Beatles, a editora Apple, Carnaby Street». Mais importante do que as correntes, diz Ana Salazar, era a ousadia. «Ao contrário do que acontecia aqui em Portugal, onde as pessoas eram muito clássicas. Quando A Maçã abriu portas, as pessoas que se vestiam naquela loja - era um pouco toda a gente, passando pelos designers, e pelos artistas - ousavam realmente: vestiam as gangas todas rasgadas, com as lantejoulas, os veludos, os patchworks, aquelas camisas indianas e aqueles colares todos. E mulheres que eram normalmente muito clássicas, elas próprias sentiram desejo de mudança. Depois com a revolução de 74, pessoas que não tinham poder de compra começaram a aderir a essa situação. Foi uma época de democratização também na moda. Começou tudo a andar com aquele tipo de roupa. As pessoas que ficaram por cá, divertiram-se imenso».
Ana Salazar estreou-se no mundo da moda há 36 anos, quando abriu a sua primeira loja em Lisboa, na avenida da Igreja. Em perfeita sintonia com a onda londrina, A Maçã era uma espécie de oásis no novo bairro em construção de Alvalade. Ana tinha dado início a uma revolução antes da revolução. Não criava ainda roupa, mas as propostas de moda que seleccionava em Londres iam ao encontro de uma abertura que se começava a sentir aqui na maneira de vestir. Mas o que significa para ela ser chamada de pioneira? «É uma mulher que arranca com todo um processo que não era de todo conhecido até essa data, a essa mulher e numa determinada área.». Ou seja, no seu caso pessoal «isso é a história, foi uma coisa que aconteceu: a minha vontade e apetência por fazer moda. Depois penso que foi uma revista profissional - Profession textile (1)
- onde venho na capa, «La pionniére de la mode au Portugal», depois de estar em Paris havia uns dois ou três anos,. Isso acabou por vir a ter ecos aqui. O que aconteceu foi eu gostar de moda e ter conseguido fazer moda em Portugal.»
Vivendo num país sem muita tradição de moda, baseada aqui numa reprodução e montagem de modelos, praticadas nos ateliers de costura a partir das famosas toiles (modelagem construída em tecido de pano crú) que eram trazidas sobretudo de Paris, Ana recorda que, naquela altura, o que existia eram as costureiras, as modistas: «ia-se à modista com as revistas na mão, as Burdas, etc., e pedia-se para fazer igual. Agora, com alguma tristeza minha, passou-se tanto tempo, vejo que se passa isso outra vez, há pessoas de diferentes gerações que querem ir fazer de novo o que vem na revista X, Y e Z. É uma coisa de que me mantive sempre afastada». Portanto, quebrar com essa fase da modista significava fazer algo que fosse diferente? «Que fosse novo e diferente do que vem em todo o lado. Penso que a minha principal característica, a característica das colecções Ana Salazar, é realmente procurar sempre a inovação, o novo. É evidente que há sempre referências, mas isso é utilizar uma referência para depois a transformar».
Pouco depois de começar a comprar peças de pronto a vestir a fornecedores ingleses, «eles disseram que as peças que produziam para nós – e para as quais eu já dava indicações e misturava modelos - eram as que mais vendiam para o resto da Europa. Penso que aí já se revelou toda uma apetência inata para fazer um determinado tipo de moda.»
«Só uns anos mais tarde começou a proliferação de escolas de moda em Portugal; obviamente que toda a gente que faz uma escola de moda é estilista. Há uma palavra em França sobretudo que disciplina essa situação: criador e criadora. Estilista é toda a gente que faz uma escola de estilismo, o criador é alguém que cria. A palavra cá em Portugal soa um bocadinho forte». Criador(a) de moda é também alguém que tem a capacidade de criar um estilo único, adaptado ao pronto a vestir (distinto da ideia subjacente aos antigos ateliers de costura). E é aí que reside igualmente o pioneirismo de Ana Salazar, tendo como ideia subjacente uma democratização da moda.
A sua ideia de romper com o passado é algo que se mantém até aos dias de hoje. «Estou sempre a querer ir mais longe no que respeita ao novo e a experimentar coisas absolutamente inusitadas. Muitas pessoas que começaram com coisas ousadas e especiais, hoje já se vergaram um bocado ao mercado. Eu não me tenho vergado. De uma forma geral, o mercado não está bom para ninguém. Tenho sobrevivido porque [Ana Salazar] é uma coisa muito única, mas é um nicho de mercado».
A empresa que montou com Manuel Salazar em 1974 mantém-se até hoje; com o nome Fundamental, fábrica que chegou a ter 50 pessoas a trabalhar. Hoje funciona como atelier e gabinete criativo. Em 1977 a criadora começou a desenvolver uma marca própria, designada Harlow, para exportação e também para comercialização na Maçã. A colecção foi mostrada na FIL (2)
, num stand inspirado no cinema: «Durante muito tempo falou-se nesse acontecimento. Com ele iniciou-se todo um conceito de espectáculo e de mise-en-scène ligados a moda que não existiam em Portugal nessa época.(...) Inventavam-se estruturas e cenários onde não os havia.»(3) A partir daqui, a criadora lançou aquilo a que chamou «Acontecimentos de moda», cuja dimensão e estrutura se distinguia das «passagens de modelos» realizadas pelos ateliers de costura de Lisboa. Ao primeiro destes acontecimentos, a 10 de Maio de 1980 (Hotel Ritz), seguiram-se muitos outros, cerca de 30 até início da década de 90, incluindo aqueles que tiveram lugar em Paris. Depois do Hotel Sheraton (12.10.1980) e da Estufa Fria (8.03.1981), ficaram para a história os grandes desfiles do Coliseu (em 10.10.1981 e em 5.04.1982), que congregaram cerca de cinco mil espectadores, algo inédito e que é comparável ao que aconteceu no Japão: «Quem fez desfiles com este género de conceito foram os designers japoneses (...), por exemplo, o Issey Miyake».(4)
A primeira colecção assinada com o nome da criadora foi a de Outono/Inverno 1982/83 exposta na Sociedade Nacional de Belas Artes (24.10.1982), que fez juz à ligação que Ana sempre manteve ao mundo das artes, mesmo nos seus próprios acontecimentos, em que convidava artistas, e outras pessoas que achava interessante ter na passerelle. «Cheguei até a fazer um desfile na Intermoda [Fil] com pessoas baixas e gordinhas e as manequins ficaram em segundo plano».(5)
Naquele início da década de 80 Ana Salazar lançou a ideia de concessão de espaços nas feiras de moda portuguesa, assim como de acções que divulgassem o trabalho de novos estilistas; a meio da década, foi convidada pelo Museu do Traje a inaugurar ali o Espaço Anos 80. E em 1985 abriu uma loja e escritório comercial na principal capital de moda internacional, para difusão de uma imagem de moda portuguesa. A sua filha Rita Salazar ficou à frente deste espaço, considerado entre os «novos templos da moda» pela revista Marie Claire. Como Ana observa «nos anos 80, as pessoas vestiam-se muito. Hoje sinto que há um bocadinho falta de glamour. Mas devido ao fenómeno low cost as pessoas acabam por acumular muita roupa. Foi a tal década do look, uma década gloriosa, culturalmente apareceu muita coisa, pelo menos em Portugal », como dizia numa entrevista que me deu em Maio de 1995.
Ana Salazar foi também a primeira pessoa em Portugal a conceder licenças, isto é, a conceber linhas, paralelamente à criação de pronto a vestir. Ao longo dos anos 90 esteve assim na origem de linhas de produtos de autor(a), o que era inédito na moda portuguesa. Actualmente são cinco: Cerâmica (Recer), Têxtil-lar (Lameirinho), óculos (Proóptica; no passado, com a IDC, do grupo Alain Mikli); e ainda a linha de Perfumes (Homem, Mulher, e para ambas as linhas Higiene), e a Marroquinaria.
A mulher a quem se dirige Ana Salazar é, desde sempre, uma mulher segura, que sabe o que quer, e afirma a sua personalidade através da roupa, que é a continuação da personalidade. «A roupa não é mais do que um atavio da personalidade.» Ou, traduzindo para castelhano, como escrevia há uns anos a Vogue espanhola, «Ana Salazar: una moda para uma mujer segura, que quiere ser y no parecer».
Se se inspirar numa década em particular, como os anos 20 - ou os Quarentas que são de eleição para ela, talvez por ter nascido nessa década - é logo para a transformar e projectar numa ideia de mulher contemporânea. Ao saber que teríamos a presente revista dedicada a Simone de Beauvoir, imediatamente recordou uma colecção (Verão 88) que jogava um pouco com essa imagem beauvoiriana, do estilo dos cabelos e vestuário inspirados nos anos 40.
Ana lia muito enquanto jovem.Vinte anos passados sobre Memórias de uma menina bem comportada (1968) e quase 60 sobre O Segundo Sexo (1949), continua a ser uma devoradora de revistas. Começou a ler antes de chegar à escola, em casa, e ainda adolescente já andava com a Elle francesa dentro do saco. Depois, mais tarde, Sartre e o existencialismo foram também motivo das suas leituras.
A mãe Ema e o pai Oskar Pinto Lobo (pintor e arquitecto, nascido em Príncipe, descendente de uma família de Goa, e de avô inglês) tinham sempre a casa cheia de amigos. Na casa da Praia da Vitória, junto ao Monumental, havia festas, serões, tertúlias enfim, por onde passavam o João Villaret, António Ferro, Fernanda de Castro, ou Almada Negreiros de quem o seu pai era muito amigo. Ana reconhece-se permanentemente no pai – um homem de figura irrepreensível, sempre muito bem vestido, e a quem no liceu (Camões) chamavam o príncipe perfeito. Da família dele, só conheceu a avó e as duas tias, Olga e Lia (Amélia, que «chegou a andar no liceu»). Quanto a Ema, Ana refere-se à mãe como uma mulher brilhante: «Ela era forte e muito bonita, com muita presença. Era uma mulher loura, com olhos azuis lindíssimos, tinha-lhe uma adoração, mas era raríssimo estar com ela. Aliás, eles nunca estavam comigo; eu estava sempre com a minha avó [materna]. Depois, tudo mudou quando se separaram em 1950, e eu fui para o liceu de Oeiras. A vida da linha do Estoril era totalmente diferente». Naquele liceu, que era misto, os rapazes andavam de vespa, e o ambiente vivido era semelhante ao que se via nas histórias dos filmes americanos dos Cinquentas. O Lido, depois das aulas, ocupa um lugar eleito nas memórias desta menina bem comportada, que muito cedo aprendeu a ler e a escrever, teve aulas de piano, fez patinagem, e gostava de fazer vestidos para si própria com a ajuda da avó, que tinha sido modista de alta costura, e com quem ía passear no Chiado e na Baixa: «Eu não queria normalmente o que estava no mercado; seleccionava as coisas que achava que iriam funcionar muito bem. Às vezes escolhia mesmo tecidos que a minha avó dizia não serem os mais indicados, mas que depois resultavam.»
O seu imaginário de criança fixou uma imagem de uma menina loura de cabelos louros e lisos; sem correspondência no real, acabou por construir um ideal para si própria e aos nove anos já se vestia de uma forma um pouco diferente e esticava o cabelo com a ajuda da avó Arminda que, com papel pardo, lhe passava o «cabelo a ferro».
Numa outra entrevista que lhe fiz em 2003 para o livro que congrega 15 criadores de moda e outras tantas histórias de hábitos de vestir(6)
, Ana afirmava que o caminho está muito mais facilitado do que quando ela começou, numa altura em que nem se sabia o que era um estilista de moda. E como é que nos dias de hoje podemos continuar a ser visionárias, pergunto-lhe? «É uma questão de sensibilidade. São características um pouco individuais e inatas. São aquelas coisas que não se aprendem. A minha actividade faz-me viver. Tenho um interesse enorme por conhecer o novo. Não me preocupo com o passado; coisas que não são interessantes, recordações, tento apagá-las da memória; procuro viver o presente no futuro. Sempre. Isso faz com que uma pessoa procure sempre viver uma série de acções e ser no fundo pioneira a fazer-se isto ou aquilo. Acho que é mais uma mentalidade.»
Cristina L.Duarte

(1) «Ana Salazar: pionniére... Elle a été la premiére à prouver qu’au Portugal la mode pouvait exister. Elle reste encore la seule à realiser un créatif, universel, qui ne doit rien à un folklore local. Elle est celle qui fait bouger les choses et évoluer les mentalités…».
(2) No ano de 1978 Ana Salazar ganhou o prémio de confecção feminina do Salão Intermoda/ FIL. Com essa colecção viajou até Londres e a Paris, ao salão do Prêt-a-Porter. A este prémio, seguiram-se muitos outros, nomeadamente entregues por orgãos de imprensa, e distinções que incluem a Condecoração de Grande Oficial da Ordem do Infante D.Henrique (1997), e o Prémio Nacional de Design 2003 – Troféu Sena da Silva – Carreira (num ano em que foi atribuído em ex-aequo com Henrique Cayatte e José Cruz de Carvalho).
(3) Cristina L. Duarte, Ana Salazar – Uma Biografia Ilustrada, Temas e Debates, Lisboa, 2002, pág. 34.
(4)Ibidem, p.35
(5)Ibidem, p.36.
(6) Cristina L. Duarte, «E Deus criou a mulher Ana Salazar», in 15 Histórias de hábitos – Criadores de moda em Portugal, Quimera, Lisboa, 2003

1 comentário:

A Lusitânia disse...

Obrigada Cris por este texto.