30.5.20

A glória da Moda ~ 1988 fast-forward

Por Cristina L. Duarte

Quando a Máxima, a Elle e a Marie Claire, as três primeiras grandes revistas femininas e de moda publicadas em português, surgiram em 1988, eu era uma jovem socióloga com apetência pela Comunicação. No final de 1987 tinha começado a escrever num jornal sobre cultura urbana e imediatamente sobre moda, não só em Portugal, mas sobretudo deste lado da Europa. Para algumas pessoas, como eu, a Europa começava aqui. Ao mesmo tempo que escrevia sobre os desfiles dos novos estilistas (recém formados das escolas de estilismo) comecei a observar de uma forma sistemática o trabalho de alguns nomes, bem como a interpretar o movimento de moda em Portugal – bem como o pioneirismo que lhe está associado, e no qual o nome de Ana Salazar surge como figura de proa. Mas assisti sobretudo ao despontar de designers como José António Tenente, Lena Aires, Nuno Gama ou Luís Buchinho, entre outros. Hoje já existem várias gerações (Três? Quatro?) de criadores surgidos no pós 1974.
Antes de todas as marcas de vestuário – Benetton, Zara, Mango, Massimo Dutti, H&M e por aí fora - que encontramos hoje em qualquer capital europeia se terem implantado em Lisboa, tínhamos à nossa disposição exactamente o quê? Os Grandes Armazéns do Chiado. Ciclicamente, chegam-nos no correio electrónico blocos de imagens que retratam uma Lisboa ‘antiga’: foi assim que me deparei com uma imagem dos Armazéns em 1965, àquela data com anúncios na varanda do primeiro andar: «Nunes dos Santos» e «Preços das Fábricas». Porém, falar dos armazéns que lentamente vinham a entrar num período de decadência nos anos 80, implica referir que há um antes e um depois de 1988, isto é, um antes e um depois do incêndio do Chiado, que deflagrou a 25 de Agosto na Rua do Carmo, uma rua que foi cantada pelo grupo UHF, e onde em 1976 Ana Salazar abria uma loja Maçã – a primeira já tinha aberto em 1972, na Avenida da Igreja, fazendo aquilo que Ana define como «a revolução antes da Revolução». Como ela me conta no livro Ana Salazar – Uma Biografia Ilustrada, «viviam-se os alegres anos 70 e internacionalmente as pessoas queriam afirmar-se através do vestuário. Em Portugal, além disso, ano e meio depois da abertura da Maçã, aconteceu a Revolução de Abril de 74. Aí o êxito avoluma-se pois as pessoas queriam vestir coisas diferentes e não convencionais. Foi um período absolutamente áureo do ponto vista comercial e da atitude. Por vezes, compara-se o papel desempenhado pela Maçã com o dos Porfírios ou da Loja das Meias. Mas não tem nada a ver. Eu também ía aos Porfírios antes da Maçã (...), e havia a Delfieu, a loja de uma francesa que fazia coisas simples, mas também tinha um conceito diferente para a época.»  Mas neste vaivém temporal ao longo do movimento da moda em Portugal, em 1988 ela já tinha a sua revolução em marcha: primeiro com o nome Harlow e depois, a partir de 1982, com as colecções em seu nome - Ana Salazar chegou então a Paris em 1985, onde a Marie Claire francesa considerou a sua loja como um dos novos templos da moda e a Madame Fígaro afirmou «elle griffe le Portugal».
Continuando. Para além da Baixa, dos Armazéns do Grandella, dos Grandes Armazéns do Chiado e de Ana Salazar, para quem gostava de moda (ou de vanguardismos) quais eram as opções que se tinha no final da década de 80? Eu sempre tive uma que combinava um pouco aquele gosto da arqueologia (escavar, escavar...), combinado com a história contemporânea: a descoberta das décadas anteriores, em especial anos 40, 50, ou 60: era a Feira da Ladra aos sábados e às terças-feiras. Não resolvia tudo, mas ajudava, e os grandes achados eram possíveis quando se encontravam peças retro a muito baixo custo. Uma camisa de estampado psicadélico, um vestido bastante rodado dos anos cinquenta, a par com os vinis, que, na década de 80, começaram a ser coleccionados por aqueles que se recusavam a dizer-lhes adeus. Bye-bye vinil, olá CD. As emoções visuais da MTV ajudavam os albúns e os artistas a saltarem para o pequeno ecrã, criando novas ficções musicais, mas desta feita a cores e em movimento. Motion picture, enfim. A influência do meio urbano e industrial fazia-se sentir neste país à beira-mar plantado que integrou a comunidade europeia em 1986, aproximando-se do ideal cultural europeu. Se a moda (nacional) se viria a tornar ou não um ‘movimento perpétuo’, logo se veria. Em 1988 também Carlos Paredes viu editado em CD o seu disco de 1971, que Edgar Pêra evocou através da sua linguagem cinematográfica há um par de anos: «Movimentos Perpétuos: Tributo a Carlos Paredes».
Ainda no final de 1988 outros músicos, os Madredeus, iriam representar Portugal na Bienal dos Jovens Criadores do Mediterrâneo, onde marcaria presença também o jovem José António Tenente. Antes mesmo de abrir a sua primeira loja (em 1990, na Travessa do Carmo), Tenente tinha as suas peças à venda numa lojinha do Bairro Alto chamada Spera. Aliás, o Bairro Alto no final da década ia sendo descoberto por novos habitantes que da música ao design criavam novas ondas no tal movimento de moda.  Logo no final da década de 70 foi a Cliché (fundada por Helena Redondo) a preencher no Bairro Alto esse papel precursor da nova vaga de oferta urbana, com a música e a moda de braço dado.  Não muito longe dali, no mesmo ano de 1979, a Manuela Gonçalves -  que era de Pintura, mas tinha ganho uma Bolsa e estudado entre 1972-74 na St.Martins School of Art, em Londres – inaugurou a sua Loja Branca, ainda hoje a funcionar na Praça das Flores. Para Londres tinham seguido também Helena Redondo e Ventura Abel, outros dois seleccionados que chegaram a Lisboa com novas ideias.
Entre 1985-1988, Manelinha, como é carinhosamente conhecida, passou a assinar a roupa de homem da loja Jónatas, na Rua da Atalaia - aberta em 1984 por João Borges (Jonas). Também naquele ano, outra loja de homem abriria  no BA, na Rua da Rosa, «Manuel Alves», que fez depois dupla com o José Manuel Gonçalves: as propostas masculinas deles eram na verdade únicas, em qualidade e design. Bom, mas esta história é conhecida.
Andando às voltas no Bairro Alto de hoje, ninguém diria que as lojas de roupa no final da década de 80 se contavam pelos dedos de uma mão. E quem tinha prática, imaginação e vontade de experimentar teria de procurar (ou inventar...) as suas escolhas de moda nas lojas de tecidos do Chiado - Souza’s, Tátá Rodrigues, Ramiro Leão, Eduardo Martins, etc. -  ou noutras mais dispersas pela cidade; teria igualmente de deslocar-se à Rua da Conceição – como hoje – para procurar os botões, os colchetes, as fitas, os gorgorões e outros acessórios.
Naquela altura, toda a gente tinha uma amiga modista ou conhecia modistas. As mais criativas não se limitavam a copiar, procuravam inventar algo novo, de acordo com a cliente. Fazia-se uma moda «personalizada», mesmo que a partir de «figurinos». Esta era a tradição herdada dos antigos ateliers de costura – de casas mais ou menos famosas – desde a década de 20, em que Madame Vale abria o seu atelier no Marquês de Pombal, rompendo com a centralização da Baixa, no caminho das Avenidas Novas. Com atelier de confecção e passagens de modelos, os quais eram feitos a partir das toiles das casas de costura que se iam buscar a Paris, este foi um dos mais famosos ateliers de Lisboa. Mas outros lhe sucederam dirigidos por costureiras de renome, como o de Ana Maravilhas (na Rua Marquês de Fronteira, que trabalhou muito para a loja Ayer), ou de Maria Luísa Barata (com atelier na avenida engenheiro Duarte Pacheco), Napoleão (alfaiate que também trabalhava para senhora) e Sérgio Sampaio, com loja na Avenida da República, junto ao Saldanha. No Porto, dava que falar uma modista em particular: a Candidinha, famosa pelos seus enxovais e depois roupa para meninas e adolescentes. Chegou a ter também atelier em Lisboa. Mas no Porto, na primeira metade da década, a mudança para novos caminhos na moda nacional tomava também o seu rumo: primeiro com a Cúmplice (fundada por Manuel Alves, antes de vir para Lisboa, e por António Coelho), depois em 1983 com a Traço Branco, de Manuela Tojal (1956-2005), na Foz do Douro, e a partir do final da decada de 80 com uma galeria – a Código – de arte e moda, fundada por um trio de amigos, Anabela Baldaque, Manuela Pinto e Amândio Pinto, na Rua da Torrinha. Ali programavam-se exposições, ao mesmo tempo que se expunha roupa de jovens criadores de moda de todo o país. Ainda em Dezembro de 1988, haveria de surgir no Porto aquela que seria a primeira Zara em Portugal, e que foi também o início da internacionalização do grupo galego, a Inditex. A esta sucederam-se muitas outras lojas que representaram outro fenómeno: o da massificação do vestuário aliada à democratização da moda (como uma segunda revolução pós-74), nesta escala, sem concorrentes e precedentes em Portugal, onde a indústria e o design de moda nunca conseguiram se implantar da mesma forma e com a mesma agressividade.
Voltamos a Lisboa, para uma investida na Praça de Touros, onde em plena arena se apresentou a terceira edição das Manobras (1988), uma manifestação cultural que trouxe a moda para a rua, fazendo desta um palco experimental para quem tinha tesouras afiadas e vontade de experimentar e mostrar novos trabalhos. Durante 1986 e 1987 a associação Manobras ocupou o Largo do Século, depois a arena, e entrou de seguida em pousio, para voltar em 1994, ao Largo do Século, que foi onde, por exemplo, se estreou Dino Alves com uma intervenção designada «Pós de Maio». Hoje, o criador continua a desenvolver o seu trabalho em atelier, mas sem comercializar as suas criações em loja.
Hoje o centro comercial, como qualquer rua, está acessível todos os dias da semana, só que dia e noite. Versão moderna dos grandes armazéns – quer fossem os do Chiado ou do Grandella – os centros constituem uma espécie de climax do processo urbano, um verdadeiro laboratório social, onde a comunidade reforça a coesão como nas festas e romarias.
Fazer a história do consumo de moda nas duas últimas décadas é percorrer assim a Lisboa das lojas históricas – a Loja das Meias (fundada no Rossio, em 1899, e de onde desapareceu recentemente, para se encontrar apenas nos centros, ou em Cascais, na Avenida Valbom); a Casa Africana; os Porfírios (que surgiram primeiro no Porto, em 1925, onde vendia exclusivamente meias, e só a partir dos anos 40 a empresa de Porfírio de Araújo, pai e três filhos, se instalaria em Lisboa, onde abriu uma segunda loja ao lado da primeira, em 1965, com moda para jovens); a Delfieu, de Claudine Battesti; a Tara, uma primeira loja em Cascais (em 1963, com uma colecção de malhas) de Teresa Sande e Castro, e depois em Lisboa, onde mães e filhas faziam compras juntas; a Migacho (1970) de Maria da Graça Pavão, filha de Pedro Rodrigues Costa (Loja das Meias), que abriu várias lojas, incluindo uma em Cascais; a Traffic e a Parfois; a Stivali (que começou por ser uma sapataria que logo se demarcou pela qualidade e pelo design das propostas); Augustus, do costureiro António Augusto, que abriu a sua primeira loja em Luanda e depois abrirá em Lisboa, em 1975, e mais tarde uma outra, ambas em centros comerciais.
Qual é agora o lugar do consumo? É a vida quotidiana, como sistema de interpretação – escrevia Jean Baudrillard ainda nos anos 70. A vitrina, a montra, é um foco nas nossas práticas urbanas e um lugar consensual da comunicação, através da qual a sociedade se tornou homogénea graças à lógica espectacular da Moda. A festa vestimentar, o prazer do novo, associados à nova arte de viver e ao culto narcisista do corpo foram evoluindo ao longo destas últimas décadas, em que a ética da beleza é também a da moda. Mas como nos dirá a filosofia, a ética é estar à altura do que nos acontece. E se as dinâmicas sociais não param, a moda também não. Longa vida para a Máxima, que soube assumir desde o início um estilo. E termino em jeito de homenagem a Yves Saint-Laurent, o criador que soube dar às mulheres o que elas precisavam na devida altura: «Sempre acreditei que a moda não serve apenas para tornar as mulheres mais bonitas, mas também, para que se sintam mais confiantes.» E elas são cada vez mais confiantes, porque acreditam na construção e afirmação da sua imagem. 

Revista Máxima, 2008

Sem comentários: