“25 de Abril: o virar da página”
são as palavras a vermelho na capa da revista Flama de 3 de Maio de 1974. Na
imagem da capa um chaimite com dois soldados rodeados por uma multidão de
homens e onde se conseguem ver duas mulheres. A revolução tinha acontecido nem
há uma semana e, embora as mulheres tenham sido protagonistas na rua desde as
primeiras horas, a verdade é que essa imagem de capa não o reflecte.
Folheia-se a revista e na página
36 um artigo retirado de The Saturday
Evening Post/The Curtis Publishing Company com o título «Porque lutam as
Mulheres»? começa assim Depois de uma
vida a investigar, em profundidade, a psicologia feminina, Sigmund Freud
escreveu esta pergunta angustiada no seu diário: «Meu Deus, mas que quererão as
mulheres?» A resposta feminista é a seguinte: «Por Deus, elas querem
liberdade!» … A supremacia masculina é o facto mais óbvio e dominante da nossa
sociedade. Todas as nossas instituições sociais de onde emana poder, e todas as
que guiam acções e opinião, são dominadas pelo homem. O Governo, as Forças
Armadas, os tribunais, os sindicatos, as igrejas, as universidades, as
comunicações, a banca, a produção, os meios de transporte, enfim, todas as mais
significativas profissões se encontram sob a orientação masculina. O homem toma
as decisões cruciais na sociedade.”(1)
À falta de melhor e de algo sobre
a situação das mulheres em Portugal, o artigo continua analisando a sociedade
norte americana. Na altura, os movimentos de mulheres em
Portugal eram incipientes ou inexistentes, depois da sangria feita pelo
fascismo de que recordo aqui a extinção compulsiva do Conselho Nacional das
Mulheres Portuguesas, na sequência de uma grande exposição de livros escritos
por mulheres em 1948. A publicação,também nesse ano,de “As Mulheres do meu País”
de Maria Lamas, foi o oásis num deserto de direitos e representação,
desocultando e visibilizando as mulheres concretas e esquecidas deste nosso
triste país.
Só em 1975, pela primeira vez, as
mulheres portuguesas comemoraram o dia 8 de Março – Dia Internacional da Mulher
– em liberdade. Longe ia o ano – 1910 – em que Clara Zetkin fizera aprovar uma
proposta de que se comemorasse a nível internacional um dia para lembrar a
situação particular das mulheres na sociedade… Mas ainda antes do primeiro 8 de
Março de 1975, um grupo de feministas portuguesas do MLMousara afrontar o poder
patriarcal e os seus símbolos, num 13 de Janeiro de 1975 de que há um registo
elucidativo (2) do que então aconteceu!
A luta das mulheres em todo o
mundo e em Portugal não tem sido um passeio pela avenida! Tem sido o resultado
de muita luta, muita convicção e muita persistência para afrontar a sociedade
que está organizada e estruturada de uma forma desequilibrada e anacrónica, que
corresponde aos interesses do patriarcado e do capitalismo. É contra isso que
as mulheres se têm batido individualmente e nas suas organizações, sendo todo o
século XX um período de enormes transformações sociais, políticas, económicas,
culturais e de mentalidades. As leis têm-se feito debaixo dessa pressão enorme
da luta das mulheres e de muitos aliados, mas também sabemos como tantas vezes
as leis existem e não são regulamentadas ou não são postas em prática! E
sabemos como houve leis que não avançaram durante tantos anos porque tocavam no
âmago da sociedade patriarcal e estilhaçavam a imagem e o papel que o
patriarcado destina às mulheres: frágeis, submissas, cuidadoras, atentas,
recatadas, disponíveis, discretas, caladas, sofredoras… Foram as leis de
protecção às mulheres vítimas de violência, as leis da paridade e a lei de
descriminalização do aborto, que só conseguiram ver a luz do dia três décadas
depois do 25 de Abril! Outros temas estão aí a exigir medidas e intervenção do
Estado como a mutilação genital feminina, o assédio sexual, o tráfico…
40 anos depois do 25 Abril
podemos dizer que se fez uma enorme caminhada e que muito já foi alcançado, mas
para os/as que acham que comemorar um Dia Internacional da Mulher já não faz
sentido, lembramos a justeza e a pertinência de dar visibilidade às lutas das
mulheres pela igualdade, enquanto persistir todo e qualquer sinal de
discriminação e de atropelo aos direitos, tratando de modo desigual uma parte
da humanidade, em função do seu sexo. Nunca é demais lembrar a violência de
género e a sua forma extrema, o femicídio, as discriminações no trabalho, a
precariedade, o trabalho sem direitos, as diferenças salariais em função do
sexo que em Portugal aumentaram quase 70% em cinco anos, a dificuldade em
atingir a paridade baseada na menorização, na maternidade, ou em tectos de
vidro intransponíveis, o sexismo na linguagem, nos media, no dia-a-dia, as
mudanças no rumo da vida resultantes do desemprego, tantas vezes provocando uma
amputação nas aspirações e nos projectos de vida e talentos que são truncados.
Associado à austeridade intensa e
permanente a que a troika e os partidos do governo vêm sujeitando o povo
português, com consequências que se traduzem em recuos de décadas na
organização social e, em primeiro lugar, na vida das mulheres, o
conservadorismo está aí e as mulheres são o alvo a abater. A culpabilização do
aborto através da aplicação de taxas moderadoras e o fim das licenças de
parentalidade pagas a 100% pela Segurança Social depois de um aborto,como
recentemente foi aprovado numa moção do Congresso do PSD, ou a associação do
direito à interrupção da gravidez à quebra da taxa de natalidade por parte dos
sectores mais fundamentalistas na nossa sociedade são os sinais da perigosa
onda que varre a Europa e que no Estado Espanhol está a levar milhares de pessoas
e mulheres espanholas a repudiar a lei Gallardon que é um recuo brutal nos seus
direitos sexuais e reprodutivos.A recente iniciativa por parte do grupo
parlamentar do PSD de interromper um processo legislativo que estava a decorrer
relativamente à co-adopção por parte de casais do mesmo sexo, criando um
episódio grotesco de propor um referendo sobre adopção eco-adopção por parte de
casais homossexuais, foi mais um episódio desse conservadorismo neste caso
dirigido aos casais e às famílias LGBT. E por último, a mesma pessoa que mandou
as nossas jovens e os nossos jovens emigrar – Passos Coelho, primeiro-ministro
de um país chamado Portugal – anunciou a criação de uma comissão para estudar e
propor políticas de promoção da natalidade! Ofensivo e repugnante é no mínimo o
que se pode dizer sobre isto!
Volto ao princípio: por que lutam
as mulheres?
Se o que as mulheres conseguiram alcançar foi
fruto da luta, os riscos de perder direitos e de recuar décadas é enorme nesta
época de austeritarismo e conservadorismo. Hoje mais do que nunca a mobilização
e a resistência contra estas medidas tornam a comemoração do Dia Internacional
da Mulher tão actual e pertinente. As mulheres querem viver e ser protagonistas
num mundo de igualdade, liberdade, justiça, solidariedade, e paz.
(1) «FLAMA»,
nº 1365, Ano XXX, 3 de Maio de 1974
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