12.3.14

Por que lutam as mulheres?

“25 de Abril: o virar da página” são as palavras a vermelho na capa da revista Flama de 3 de Maio de 1974. Na imagem da capa um chaimite com dois soldados rodeados por uma multidão de homens e onde se conseguem ver duas mulheres. A revolução tinha acontecido nem há uma semana e, embora as mulheres tenham sido protagonistas na rua desde as primeiras horas, a verdade é que essa imagem de capa não o reflecte.
Folheia-se a revista e na página 36 um artigo retirado de The Saturday Evening Post/The Curtis Publishing Company com o título «Porque lutam as Mulheres»? começa assim Depois de uma vida a investigar, em profundidade, a psicologia feminina, Sigmund Freud escreveu esta pergunta angustiada no seu diário: «Meu Deus, mas que quererão as mulheres?» A resposta feminista é a seguinte: «Por Deus, elas querem liberdade!» … A supremacia masculina é o facto mais óbvio e dominante da nossa sociedade. Todas as nossas instituições sociais de onde emana poder, e todas as que guiam acções e opinião, são dominadas pelo homem. O Governo, as Forças Armadas, os tribunais, os sindicatos, as igrejas, as universidades, as comunicações, a banca, a produção, os meios de transporte, enfim, todas as mais significativas profissões se encontram sob a orientação masculina. O homem toma as decisões cruciais na sociedade.”(1)
À falta de melhor e de algo sobre a situação das mulheres em Portugal, o artigo continua analisando a sociedade norte americana. Na altura, os movimentos de mulheres em Portugal eram incipientes ou inexistentes, depois da sangria feita pelo fascismo de que recordo aqui a extinção compulsiva do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, na sequência de uma grande exposição de livros escritos por mulheres em 1948. A publicação,também nesse ano,de “As Mulheres do meu País” de Maria Lamas, foi o oásis num deserto de direitos e representação, desocultando e visibilizando as mulheres concretas e esquecidas deste nosso triste país.
Só em 1975, pela primeira vez, as mulheres portuguesas comemoraram o dia 8 de Março – Dia Internacional da Mulher – em liberdade. Longe ia o ano – 1910 – em que Clara Zetkin fizera aprovar uma proposta de que se comemorasse a nível internacional um dia para lembrar a situação particular das mulheres na sociedade… Mas ainda antes do primeiro 8 de Março de 1975, um grupo de feministas portuguesas do MLMousara afrontar o poder patriarcal e os seus símbolos, num 13 de Janeiro de 1975 de que há um registo elucidativo (2) do que então aconteceu!
A luta das mulheres em todo o mundo e em Portugal não tem sido um passeio pela avenida! Tem sido o resultado de muita luta, muita convicção e muita persistência para afrontar a sociedade que está organizada e estruturada de uma forma desequilibrada e anacrónica, que corresponde aos interesses do patriarcado e do capitalismo. É contra isso que as mulheres se têm batido individualmente e nas suas organizações, sendo todo o século XX um período de enormes transformações sociais, políticas, económicas, culturais e de mentalidades. As leis têm-se feito debaixo dessa pressão enorme da luta das mulheres e de muitos aliados, mas também sabemos como tantas vezes as leis existem e não são regulamentadas ou não são postas em prática! E sabemos como houve leis que não avançaram durante tantos anos porque tocavam no âmago da sociedade patriarcal e estilhaçavam a imagem e o papel que o patriarcado destina às mulheres: frágeis, submissas, cuidadoras, atentas, recatadas, disponíveis, discretas, caladas, sofredoras… Foram as leis de protecção às mulheres vítimas de violência, as leis da paridade e a lei de descriminalização do aborto, que só conseguiram ver a luz do dia três décadas depois do 25 de Abril! Outros temas estão aí a exigir medidas e intervenção do Estado como a mutilação genital feminina, o assédio sexual, o tráfico…
40 anos depois do 25 Abril podemos dizer que se fez uma enorme caminhada e que muito já foi alcançado, mas para os/as que acham que comemorar um Dia Internacional da Mulher já não faz sentido, lembramos a justeza e a pertinência de dar visibilidade às lutas das mulheres pela igualdade, enquanto persistir todo e qualquer sinal de discriminação e de atropelo aos direitos, tratando de modo desigual uma parte da humanidade, em função do seu sexo. Nunca é demais lembrar a violência de género e a sua forma extrema, o femicídio, as discriminações no trabalho, a precariedade, o trabalho sem direitos, as diferenças salariais em função do sexo que em Portugal aumentaram quase 70% em cinco anos, a dificuldade em atingir a paridade baseada na menorização, na maternidade, ou em tectos de vidro intransponíveis, o sexismo na linguagem, nos media, no dia-a-dia, as mudanças no rumo da vida resultantes do desemprego, tantas vezes provocando uma amputação nas aspirações e nos projectos de vida e talentos que são truncados.
Associado à austeridade intensa e permanente a que a troika e os partidos do governo vêm sujeitando o povo português, com consequências que se traduzem em recuos de décadas na organização social e, em primeiro lugar, na vida das mulheres, o conservadorismo está aí e as mulheres são o alvo a abater. A culpabilização do aborto através da aplicação de taxas moderadoras e o fim das licenças de parentalidade pagas a 100% pela Segurança Social depois de um aborto,como recentemente foi aprovado numa moção do Congresso do PSD, ou a associação do direito à interrupção da gravidez à quebra da taxa de natalidade por parte dos sectores mais fundamentalistas na nossa sociedade são os sinais da perigosa onda que varre a Europa e que no Estado Espanhol está a levar milhares de pessoas e mulheres espanholas a repudiar a lei Gallardon que é um recuo brutal nos seus direitos sexuais e reprodutivos.A recente iniciativa por parte do grupo parlamentar do PSD de interromper um processo legislativo que estava a decorrer relativamente à co-adopção por parte de casais do mesmo sexo, criando um episódio grotesco de propor um referendo sobre adopção eco-adopção por parte de casais homossexuais, foi mais um episódio desse conservadorismo neste caso dirigido aos casais e às famílias LGBT. E por último, a mesma pessoa que mandou as nossas jovens e os nossos jovens emigrar – Passos Coelho, primeiro-ministro de um país chamado Portugal – anunciou a criação de uma comissão para estudar e propor políticas de promoção da natalidade! Ofensivo e repugnante é no mínimo o que se pode dizer sobre isto!
Volto ao princípio: por que lutam as mulheres?
 Se o que as mulheres conseguiram alcançar foi fruto da luta, os riscos de perder direitos e de recuar décadas é enorme nesta época de austeritarismo e conservadorismo. Hoje mais do que nunca a mobilização e a resistência contra estas medidas tornam a comemoração do Dia Internacional da Mulher tão actual e pertinente. As mulheres querem viver e ser protagonistas num mundo de igualdade, liberdade, justiça, solidariedade, e paz.

Almerinda Bento
[Texto publicado em A Comuna e no Setúbal na Rede]

(1)   «FLAMA», nº 1365, Ano XXX, 3 de Maio de 1974


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