13.7.14

DECLAN

 DONNELLAN                                                   

Em Maio de 1994, na qualidade de jornalista free lancer, encontrei-me com Declan Donnelan em 
Lisboaa propósito da presença do encenador no Lisboa'94, onde veio apresentar Angels in 
America. Essa  entrevista ( inédita) é aqui públicada na íntegra e sem edição, em vésperas da estreia de Rei 
Ubu, de Alfred Jarry, no Festival de Almada, com encenação de DD e cenografia de Nick Ormerod.



DECLAN DONNELLAN nasceu em Inglaterra, mas os seus pais são irlandeses. Viveu na Irlanda até aos cinco anos de idade e só depois foi para Inglaterra. Estudou em Cambridge, onde conheceu Nick Ormerod, o cenógrafo de «Angels in America», com quem hoje vive  e trabalha. No início, tonaram-se «bandsters» como diz Declan, mas depois decidiram entrar para o teatro, quando tinham 22 anos, e ficaram juntos desde então. Agora, basicamente têm dois empregos: um é o Teatro Nacional, outro é a «Cheek by Jowl». Este ano Declan Donnellan e o National Theatre ganharam cinco prémios «Olivier», por uma recente produção daquela companhia, «Sweeney Todd». Desses cinco prémios, Declan viu-se agraciado com dois: pela melhor reposição em cena de um musical e pela melhor encenação. Em Lisboa, o encenador viu a peça de Tony Kushner «Angels in America» receber os aplausos do público e da crítica. Depois da sua última representação na Capital Europeia da Cultura, Declan falou com entusiasmo sobre esta peça e a sua experiência de palco.

Como foi o seu início de carreira no teatro, enquanto encenador?
Bem, em Inglaterra não há  treino algum para encenador teatral, ou seja, ninguém treina. É muito ao acaso, aprende-se a trabalhar com a prática, aprende-se a convencer os actores a trabalharem genuinamente. Aliás, faz-se as coisas gratuitamente em teatros pequenos, em Londres, e espera-se que alguém note. Em mim e no Nick, ninguém reparou. O que se passou foi que a «Arts Council» concedeu-nos um subsídio para formarmos uma companhia  de teatro de digressão, que é a «Cheek by Jow», que formámos há 13 anos. Mas, como pessoa, desconfio muito das instituições desse período, porque todas as instituições são especialistas em descobrir talentos e todas as pessoas interessantes que eu conheço no teatro teve que as combater. Mais tarde, depois de serem famosas, essas mesmas pessoas são convidadas para trabalharem nessas mesmas instituições. Aliás, eu só fui convidado para trabalhar no Teatro Nacional depois de ter ganho três prémios como melhor encenador na Grã-Bretanha. E isso não se esquece. Uma pessoa não se sente sentimental acerca das instituições. De certa maneira, é bom que elas existam, mas é bom que elas existam para se odiar, em vez de se ser sentimental acerca delas.
Na Broadway, é terrível, não há instituições, o teatro é banal, porque não existem estes «tanques», como o Teatro Nacional;: na minha opinião elas são boas, mas é muito perigoso elas tornarem-se no único meio de trabalho e foi isso que aconteceu durante algum tempo na Grã-Bretanha.

Que tipo de companhia é a «Cheek by Jowl»?
É uma companhia teatral mais moderna e informal que o Teatro Nacional. É uma companhia mais alternativa. Nick e eu estamos com o Teatro Nacional há seis anos, mas não o dirigimos. Eu sou apenas um director associado, juntamente com mais três ou quatro. E isto é basicamente, o que fazemos com as nossas vidas. Alternamos entre duas companhias.
Todo o teatro inglês é promíscuo, não há companhias permanentes em Inglaterra. Nós fingimos que há, como o Teatro Nacional e a «Cheek by Jowl», mas são os mesmos actores. O que se passa é que algumas vezes trabalham na Cheek By Jowl, outras no Teatro Nacional, outras vezes fazem televisão, outras vezes trabalham com a «Shakespeare Company», e o contrato mais longo que assinam será de um ou dois anos. Esse seria mesmo o mais longo; a maior parte dos contratos duram três meses. A CbJ e o Teatro Nacional  ficam com os actores durante oito ou nove meses. Chamamo-nos companhias como se fossemos grandes grupos, como na Europa de leste, mas não somos nada disso. Vocês têm uma lealdade, os vossos actores estão sempre a voltar, a voltar, a voltar...                      

Em que peça estão agora a trabalhar com a CbJ?
Neste momento estamos a fazer «Measure for measure». Vamos com esta peça a Barcelona e ao Festival de Almagro, em LA Mancha, a sul de Madrid. Nós estivémos neste festival de teatro em 1985, e agora voltamos nove anos com «Measure for measure». É uma peça muito actual. Nós vamos muito a Espanha, mas esta é a primeira vez  que vimos a Portugal e esperamos estabelecer a partir de agora uma relação com Portugal. Ficámos surpreendidos com o conhecimento de inglês, porque é o melhor que encontrámos em todo o mundo. O Teatro Nacional é muito grande e muito caro, por isso não faz muitas digressões, mas com a CbJ estamos permanentemente em digressão.

Como é que começou o trabalho com «Angels in America» de Tony Kushner?
Bem, é muito interessante. Começou por ser feito num teatro muito pequeno e muito pobre em S.Francisco. O Teatro Nacional descobriu-o e convidou-me a mim e ao Nick para o fazer. Nessa altura estávamos em digressão com a CbJ em Brasília. Foi ali que lemos o texto e aceitámos o convite. Isto foi em 1991 e o autor, Tony Kushner,  ainda era muito nervoso e muito desconhecido. Fizémos a peça no TN em Londres e foi um enorme sucesso. Foi bastante interessante porque era uma peça acerca de Nova Iorque que nunca tinha sido vista, ser ser naquele teatro minúsculo de S.Francisco, e tivémos imensas «film stars» que vieram assistir à peça do TN. Era muito engraçado – com as diferentes Lauren Bacall e todas aquelas pessoas que vinham ver uma peça acerca deles, só que feita em Inglaterra, e sem sequer ter sido vista em Nova Iorque. A partir daí foi feita na Broadway, e ainda está a ser feita: todos estão a adorá-la. É uma peça muito boa que se tornou um fenómeno nos EUA.

E encenou a seguir «Perestroika», a segunda peça desta trilogia?
Sim, e está ainda em Londres. Não podíamos trazê-la a Lisboa, porque o TN é muito, muito dispendiosos, pois há muitos técnicos, muitas, muitas pessoas, de certa maneira até é ridiculo o quão dispendioso o TN é, porque os actores nem são assim tão bem pagos. . Ou seja, não ganham no Teatro Nacional muito mais do que ganham na CbJ. Existem é acordos monetários, prémios em dinheiro para todos os técnicos. Os técnicos recebem três vezes mais do que os actores, e isso é frustrante. Uma pessoa tem que manter a calma, mas aquele facto significa que o Teatro Nacional não pode viajar muito.

Como é esta «Perestroika»? Como é a continuação do «Angels...»? Quando esta história acaba aparece um anjo e nós ouvimos «O Mensageiro chegou». É-se levado a pensar que Prior vai morrer, mas não é isso que acontece.
É a mesma história que continua. É um Anjo que vem para lhe dar uma Revelação. É muito dificil explicar o que é a Revelação. Mas o Anjo tem uma espécie de louca mensagem que é, afinal, que o Céu é muito estranho e, em última instância, o Prior não morre, mas vai para o Céu. Ele volta a ter uma Revelação idêntica e volta à Terra para morrer. Mas no fim, ele não morre. Em última análise, rejeita a revelação que o Anjo lhe mostra. Ele quer que Prior funde uma religião e o Prior tem a ideia que prefere morrer normalmente, e ele volta mas ainda vive. No fim de «Perestroika» ele ainda vive.

A produção destas peças implicou dois encenadores, um em Nova Iorque e outro em Londres. Qual foi o resultado com encenadores diferentes em dois locais diferentes? O resultado tem de ser diferente.
Claro. Ainda não vimos a de Nova Iorque, porque ainda não tivémos tempo. Estava em digressão com a CbJ e eles perguntaram-nos se podíamos fazer a produção de nova Iorque e nós recusámos., exactamente porque estávamos em digressão com a CbJ. Nós tínhamos que nos manter leais à nossa pequena companhia, o que foi uma grande pena, porque assim teríamos feito muito dinheiro. Também teríamos feito muito dinheiro em Nova Iorque porque a peça foi um grande sucesso antes mesmo de estrear. Foi muito estranho que uma peça acerca de Nova Iorque fosse um sucesso assim tão grande pois todos os críticos já a tinham visto em Londres, e isso era estranho. Normalmente, em Nova Iorque, as pessoas estão nervosíssimas à espera das criticas.

Em Londres não?
Não, o que quero dizer é que a peça que ia estrear em Nova Iorque já tinha sido vista em Londres, de modo que não constituiu nenhuma surpresa quando estreou. Aliás, quando estreou, já era um sucesso, e isso é que era estranho, porque em Nova Iorque há sempre o nervosismo de se esperar pelas primeiras noites.

Qual foi o impacto da peça na América?
Enorme. Bizarro. Estranho. Para nós a América representa o mesmo que o Brasil para vocês. Tudo é levado aos extremos, ou seja, o que vocês pensam dos cariocas, nós pensamos dos americanos. É tudo muito superficial.
Bem, então a peça estreou e todos entraram em histeria na América, e o Tony passou de completamente desconhecido, a ter estrelas a lutarem para jantar com ele. Estão a fazer dois filmes sobre a peça, e estão sempre a telefonar –me para eu falar sobre Tony Kushner. Estão sempre a escrever artigos sobre o Tony em Nova Iorque. É maravilhoso, mas se se é inglês também é estranho, porque o sucesso na América é diferente do sucesso na Inglaterra. Na Inglaterra todos queremos ter sucesso, mas na América isso torna-se um bocado louco, paranóico.

As cenas na peça «Angels in America» estão sempre a cruzarem-se entre si próprias?
Isso sou eu. É como um filme – uma cena acaba antes de outra começar. Mas na «Perestroika», o Tony escreveu-as para se cruzarem de uma maneira bastante engraçada.

«Perestroika» foi escrita depois de «Angels in America»?
Tony escreveu «Perestroika» enquanto eu estava a ensaiá-la, o que não foi lá muito simpático, porque eu costumava estudá-la à noite e a peça ía chegando por fax. Ele depois reescrevia-a, até que finalmente tive que recusar, pois havia cenas novas todos os dias, e estávamos quase a estrear. Tive que dizer que não podia aceitar mais cenas, porque não era justo para os actores, novas cenas para o Anjo todos os dias.  

Esta peça é acerca da SIDA, mas numa perspectiva diferente, mais vasta, que combina vários temas nacionais com ideologia ética e com os mitos. Como é que pôs isso em palco? Ou seja,  não só a parte do drama, mas também a parte da diversão e até da comédia. Tudo isso já estava implícito na peça do Tony Kushner?
Os diálogos são muito engraçados. A luta para mim não foi fazê-la engraçada, porque a peça é muito engraçada e o Tony escreve piadas muito boas. O Tony é um óptimo comediante. Mas a maneira como eu encenei era um pouco mais séria. Aliás, ouvi dizer que na Broadway é muito mais engraçada.
Claro que levamos a SIDA a sério; os actores fizeram muita pesquisa sobre o assunto e estiveram em hospitais e visitaram pessoas, e ficaram todos muito deprimidos e assustados quando estávamos a ensaiar. Foi um período de ensaio muito longo, e eu nunca mais quero ver o Síndroma de karposi na minha vida, e é bastante assustador, quando se ensaia e se entra no papel.
Mas, na minha opinião, mudámos o texto de maneira a ficar mais sério. Eu não estou a dizer que a peça não foi escrita de um modo sério; foi, só que às vezes, havia a quantidade certa de piadas e às vezes havia piadas a mais, e nós temos que lembrar as pessoas do que se está a passar e eu quis fazê-lo de uma maneira mais emocional. E o meu trabalho com os actores tende para isso mesmo. Tende não para o engraçado, mas para o emocional. O Tony é um escritor cómico brilhante e muito intelectual, só que eu não sou um encenador intelectual, mas sim emocional. Nós os dois tivémos muitas, muitas discussões. Quer dizer, agora falamos mas as nossas discussões eram famosas e havia a piada que o Tony era o primeiro autor vivo com quem eu tinha trabalhado e que ele parecia que se tinha juntado à fileira dos Mortos, porque eu quase que o matei, quando estávamos a ensaiar, com as nossas grandes discussões. Mas no fim tudo resultou bem. Ficámos satisfeitos.

Cristina L. Duarte
(Maio 1994)



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