Quando fui convidada para participar
nesta conferência [21 de Junho, Centro de Cultura e Intervenção Feminista], pensei
que esta seria uma ocasião para transmitir um pouco da minha experiência
enquanto membro da coordenação portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres,
através da ligação da UMAR a esta rede feminista internacional, desde o seu
início.
A Marcha Mundial das Mulheres surge
na sequência da Conferência de Pequim e em resposta à necessidade de uma
ligação global das mulheres, através da sua auto-organização e mobilização
contra a opressão patriarcal e a exploração capitalista. Partindo de um caderno
de reivindicações com 17 itens, agrupados em duas grandes áreas – violência e
pobreza – desde 1998 data do 1º Encontro Internacional até hoje, a Marcha
Mundial das Mulheres não deixou de intervir, mobilizar, fazer alianças, marchar
e reflectir, questionar e questionar-se porque num mundo em constante e
acelerada mudança as feministas têm de saber analisar essas mudanças e fazer
propostas.
A Marcha Mundial das Mulheres define-se como
uma rede feminista internacional que une grupos de mulheres de base e os seus
valores articulam-se em torno da mundialização das solidariedades, da
diversidade, da criatividade, da autonomia, da independência, da liderança das
mulheres e da força das alianças entre as mulheres e os movimentos sociais. A
Marcha Mundial de Mulheres é uma rede de acções pacifistas.
A questão da paz esteve sempre no
centro das preocupações da Marcha Mundial das Mulheres e surge como uma
prioridade em Outubro de 2001 por ocasião do 3º Encontro Internacional da
Marcha.
A questão palestina trouxe para a rua
milhares de pessoas, organizando-se vigílias, marchas, petições de
solidariedade que envolveram mulheres em todo o mundo em ligação com diversos
movimentos sociais. Em Portugal, como aconteceu em muitos países, o apelo das
organizações de mulheres árabes à solidariedade internacional denunciando os
crimes perpetrados pelo governo de Israel contra o povo palestiniano,
nomeadamente o massacre de Nablus e o genocídio no campo de refugiados de
Jenin, trouxe para a rua uma corrente humana que ligou o edifício da
representação da ONU em Lisboa à embaixada de Israel. Vivia-se o pós 11 de
Setembro e a postura dos Estados Unidos reflectia-se na agressividade e
impunidade israelita reforçada com o apoio do seu aliado americano. Nesse apelo
das mulheres árabes, elas não só denunciavam a violação da Convenção de Genebra
e seus protocolos e as Resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas,
como exigiam o fim do envio de armas e apoio militar a Israel, mas também davam
destaque aos efeitos desta guerra na vida das mulheres.
O 4º Encontro Internacional em
Mumbai, na Índia, iniciou-se no mesmo dia – 19 de Março de 2003 – em que as
tropas americanas lançaram o seu ataque sobre o Iraque. No Encontro na Índia é
adoptada uma Declaração de Valores que já vinha a ser debatida pelos grupos de
mulheres da Marcha em todo o mundo,no qual se analisava que a situação e o
contexto que então se vivia constituíam um recuo em relação à exigência de
resolução pacífica dos conflitos. Nesse documento pode-se ler «A construção da
paz é um compromisso actual, constante e de longo prazo.»
As exigências saídas deste encontro
na Índia foram:
×
Implementar
políticas de desarmamento;
×
Ratificar
a Convenção contra minas terrestres;
×
Acabar
com todas as formas de intervenção;
×
Assegurar
os direitos dos refugiados;
× Pressionar
os governos a fazer cumprir e garantir os direitos humanos e a resolução dos
conflitos;
×
Incluir
mulheres nas negociações de paz, tal como mencionado na Plataforma de Acção de
Pequim.
Se até essa data, as exigências desta
rede feminista internacional se dirigiam aos decisores mundiais – FMI, Banco
Mundial, ONU – e aos governos dos países, a partir de então e devido ao
crescimento do fundamentalismo religioso, os líderes e organizações religiosas
passaram também a ser consideradas como alvo a quem dirigir as nossas
reivindicações.
No Afeganistão, com a justificação da
luta contra os talibãs e pela defesa dos direitos das mulheres, assiste-se a
bombardeamentos e à morte indiscriminada de populações civis. Nesta linha e na
pretensa luta contra o Mal, a indústria dos armamentos torna-se florescente.
Em 2005, aquando da 2ª Acção Global
da Marcha, a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, juntamente com a
Manta da Solidariedade passou por 55 países entre o 8 de Março e o 17 de
Outubro. Uma Carta baseada nos valores da Igualdade, Liberdade, Solidariedade,
Justiça e Paz essenciais à construção dum mundo sem exploração, nem opressão,
onde a integridade, a diversidade, os direitos e as liberdades de todos e todas
sejam respeitados. Era a nossa utopia feminista cuja realização implica uma
educação para a não-violência, não sexista.
Em 2006, no Encontro Internacional em
Lima, no Peru, a Paz e a Desmilitarização surgiu como uma das 4 áreas de acção,
para que se continuasse a reflectir sobre a necessidade de lutar pela
desmilitarização a nível global, elevando a consciência através de uma
perspectiva feminista sobre as causas das guerras, a nossa definição de paz e
as nossas exigências e denunciar a violação como arma de guerra, a impunidade
dos agressores e o impacto e as ligações entre militarização e violência contra
as mulheres. Era necessário levar um contributo feminista sobre a guerra aos
movimentos anti-guerra, frequentemente apenas focalizados na denúncia do imperialismo
americano e omitindo as consequências da guerra nas populações, nomeadamente os
impactos nas mulheres ao nível da sua integridade física e psicológica, saúde,
auto-estima e personalidade, para além de sentimentos de vergonha e de culpa
das vítimas.
Era fundamental quebrar silêncios e
dar voz às vítimas e ao crime de violação como arma de guerra. Nas guerras, os
corpos das mulheres e das meninas são usados como despojos ou como arma de
guerra. Se recentemente na guerra dos Balcãs se assistiu a uma verdadeira
limpeza étnica, na guerra da Argélia, as violações foram maciças por parte dos
franceses e entre 1932 e o fim da 2ª Guerra Mundial, o Japão criou campos de
escravas para os seus exércitos, os chamados “centros de relaxamento” onde
usaram mais de 200 000 escravas sexuais “as mulheres de reconforto”. Segundo
dados da Amnistia Internacional, o número de mulheres vítimas dos conflitos
armados passou de 5% durante a 1ª Guerra Mundial para 50% durante a 2ª Grande
Guerra e chega a quase 80% durante os anos 90.
Não foi por acaso que a Marcha
Mundial das Mulheres aprofundou em 2010 o eixo da Paz e Desmilitarização, tendo
escolhido a região de Bukavu, no Kivu Sul, RDC para encerrar a sua 3ª Acção
Global. Esta região de África tem sido palco de crimes atrozes em que as mulheres
têm sido de forma sistemática e organizada tratadas como despojos de guerra.
Milhares de crimes sexuais, violações em massa perpetradas por “homens
fardados” segundo as próprias palavras do porta-voz do Fundo das Nações Unidas
para a População (UNFPA). Os efeitos das guerras são profundamente
“genderizados” como atestam os milhares de civis mulheres e crianças mortas e
feridas, os campos de refugiados onde de forma precária e insegura as mulheres
e as meninas, obrigadas a abandonar as suas casas e regiões, lutam por refazer
as rotinas quotidianas e são impedidas de ter uma vida normal. E essas
consequências nefastas deixam marcas profundas e duradouras nas sociedades, em
vastas regiões do planeta, impedindo o seu desenvolvimento e arrastando-as para
uma situação de pobreza extrema, sem fim à vista.
Enquanto feministas não podemos
deixar de denunciar a militarização crescente que a NATO impõe aos seus
parceiros da UE e que foi legitimada no novo conceito estratégico estabelecido
na cimeira de Lisboa em Novembro de 2010. O aumento da militarização, para além
do reforço do grande negócio das armas, leva ao aumento das despesas militares,
ao aumento dos orçamentos militares e consequente diminuição das verbas para as
áreas sociais e serviços públicos, nomeadamente educação, saúde, habitação,
segurança social. São áreas vitais em que a diminuição de verbas nos orçamentos
nacionais acarreta um acréscimo de responsabilidades e de dificuldades nas
vidas das famílias e das mulheres, em particular, a quem tradicionalmente são
acometidas as tarefas do cuidar.
Apesar da crise económica e da
diminuição dos orçamentos para os serviços públicos, as despesas militares não
param de aumentar. Barack Obama, prémio Nobel da Paz, apresentou para 2011 o
maior orçamento militar da história -708 mil milhões de dólares – o que
representa um aumento de 7,1% em relação a 2010. Em 2008, os Estados Unidos representaram
41,5% do montante das despesas militares mundiais e a China foi a segunda
potência com 5,8% do total.
Para além do crescimento das despesas
militares, há que referir a presença das Private
Military Companies, indústrias que geram centenas de milhares de dólares ao
mesmo tempo que conduzem à militarização dos quotidianos das pessoas. Com o
discurso de « restabelecer a paz » justificam a ocupação, controlando
os territórios e os seus recursos naturais e humanos.
No ano 2000 foi adoptada a Resolução
1325 pelo Conselho de Segurança, assim como outras resoluções relacionadas com
as questões da violência sobre as mulheres em situações de guerra ou com o
reconhecimento do papel e da participação das mulheres na resolução dos
conflitos, assim como no estabelecimento de prioridades na reconstrução do país
e relações sociais pós conflito. O aumento da participação das mulheres – que é
actualmente de 8% destes contingentes - poderia significar o reforço dos
processos comunitários de reconciliação e as suas recomendações poderiam ser as
prioridades a seguir em matéria de orçamento e de reorganização da vida económica
e social; no entanto, essa participação ficou reduzida à participação das
mulheres nas chamadas operações de manutenção da paz.
No entender da MMM, a participação
das mulheres nos processos de negociação deve estar associada à afirmação de
uma agenda política própria de questionamento das causas dos conflitos e dos
ataques aos direitos e à integridade das mulheres. Como construir a agenda das
mulheres em torno da militarização e como é que as vozes e a experiência das
mulheres de base e as suas visões feministas se podem exprimir nesse contexto,
constituem o desafio actual.
A experiência da MMM através de
coordenações nacionais ou de grupos de contacto em países onde as Nações Unidas
estão presentes militarmente – Haiti, Sahara Ocidental, Costa do Marfim,
República Democrática do Congo, Sudão, Chipre, Índia e Paquistão - é de
preocupação pelo facto de essas missões se terem tornado permanentes, com
profundas e perversas consequências na vida local, nomeadamente pelas
distorções na economia local e ao nível da exploração sexual das mulheres e
meninas. Ao transversalizar-se o género na política militar, acabou-se por
militarizar a política de género, segundo certas activistas da MMM. A questão
não é como operacionalizar a transversalidade de género na política de
segurança das Nações Unidas, mas sim o pôr em causa a política que está na sua
origem. Esta foi a análise feita em Novembro passado no 8º Encontro
Internacional da Marcha, realizado nas Filipinas.
A pretensa “sensibilidade” presente
no discurso do “mainstreaming” de
género nas estruturas e actividades conduzidas pela NATO e pela UE não passa de
mistificação, pois não é mais do que um adocicar dos reais propósitos
belicistas que o novo conceito estratégico aponta, caracterizado pelo
alargamento territorial, o expansionismo militar, o reforço da militarização, e
não pelo esforço real para a construção da paz.
Defendemos, enquanto feministas, que
as mulheres devem desempenhar um papel fundamental e autónomo na prevenção de
conflitos, na sua resolução pacífica e ser obreiras de uma ordem mundial
baseada na paz. A lógica dos conflitos militares é uma lógica patriarcal e
capitalista.
Neste quadro de reforço do poder
imperial e de reforço do poder bélico e dos senhores da guerra, o que fazem as
mulheres? O que podem fazer as mulheres?
As mulheres resistem e dão exemplos
de coragem, de persistência, de resistência verdadeiramente notáveis. Aung San
Suu Kyi líder da oposição birmanesa privada da liberdade ao longo de duas
décadas finalmente eleita deputada de forma esmagadora; Taslima Nasreem
obrigada a exilar-se do seu país por ter ousado denunciar o Corão como
instrumento de discriminação e opressão das mulheres, continua sob a ira da
sharia dos islamitas; Malalai Joya, a jovem afegã militante da RAWA que ousou
levantar a voz contra os senhores da guerra e todos os que tinham as mãos
manchadas de sangue; Olga Marianoa fundadora da AMUCIP, a primeira e creio que
única associação de mulheres ciganas, enfrentou muitas resistências na sua
comunidade por ser mulher e viúva. Olga diz que é uma “mulher-árvore” orgulhosa
das suas raízes e dos frutos que vão nascendo dos seus braços solidários;
Esmeralda Mateus, presidente da Associação de Moradores do Bairro de Aldoar e
verdadeira líder e organizadora dos moradores pobres do bairro.
Nomes famosos alguns, outros nem
tanto. Mas o que aqui quis trazer e visibilizar são alguns dos muitos milhões
de mulheres totalmente anónimas que são muitas vezes as sobreviventes, as
grandes heroínas que conseguem dar vida às suas comunidades.
Trago-vos aqui este objecto que tem
para mim um enorme simbolismo. É um Cesto da Paz que trouxe de Kigali, do
Ruanda, onde estive como delegada no 5º Encontro Internacional das MMM.
Visitámos várias associações de mulheres, podemos dizer as grandes obreiras da
reconstrução do Ruanda após o genocídio de 1994, em que morreu
um milhão de pessoas em 100 dias, e onde 70% da população era constituída por
mulheres. Este cesto foi feito na associação AVEGA, formada por viúvas do
genocídio. Destroçadas, destruídas, pois eram muitas vezes as únicas
sobreviventes de toda a família, perceberam que estava nas suas mãos sair da
depressão e encontrar a energia para ajudar outras viúvas a continuar a viver.
Enquanto tecem os cestos em sisal, falam, contam as suas histórias e assim
exorcizam os fantasmas e os traumas do horror vivido. Trabalham e exportam os
seus cestos da paz, miniaturas dos cestos onde guardavam a comida, usados na
celebração dos casamentos e que foram incendiados aquando dos massacres. Hoje
eles são um símbolo da identidade nacional, da reconciliação e guardam o maior
tesouro dos/as ruandeses – a Paz – assim como todos os sonhos e os segredos que
cada um/a tem. Daí que não se possa tirar a tampa, para que os sonhos e a paz
não fujam, porque são demasiado preciosos para os perdermos. Sempre que se
compra um Cesto da Paz isso dá esperança a uma viúva ruandesa e aos seus órfãos
e órfãs, esperança de paz para o mundo e para o Ruanda.
Termino,
citando a afirmação nº 1 referente ao capítulo da Paz na Carta Mundial das
Mulheres para a Humanidade adoptada a 10 de Dezembro de 2004 no Ruanda, no 5º
Encontro Internacional da Marcha Mundial das Mulheres: “Todos os seres humanos vivem num mundo de paz. A paz resulta,
nomeadamente, da igualdade entre mulheres e homens, da igualdade social,
económica, política, jurídica e cultural no respeito dos direitos, da
erradicação da pobreza que assegura a todas e a todos uma vida digna, livre de
violência, onde cada uma e cada um dispõe de um trabalho e de recursos
suficientes para se alimentar, para se alojar, para se vestir, para se
instruir, ser protegido na velhice, ter acesso aos cuidados de saúde”.
Que esse
sonho fique aqui guardado e que possa ser concretizado com a nossa resistência,
as nossas palavras, os nossos actos, a nossa militância e activismo.
Almerinda
Bento
Provérbio: Quando tu educas um homem, educas o
indivíduo. Quando educas uma mulher, educas uma nação.
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