21.6.12

Reviver o passado no III Congresso Português de Sociologia


Entre 7 e 9 Janeiro de 1996 realizou-se em Coimbra o III Congresso Português de Sociologia (sob o tema «Práticas e processos da mudança social») onde também apresentei uma comunicação intitulada "TELEVISÃO: UMA NOVA SOCIEDADE DE INTERCONHECIMENTO?". Deixo aqui esse texto, publicado posteriormente em actas pela APS.

Nesta última metade da década de 90 os processos da mudança social aceleram-se em várias frentes, sendo que os media, e em particular a televisão, orquestram decisivamente a consciência quotidiana de um mundo em rápida transição.

Há que repensar a função do 'meio' enquanto espelho da realidade. A necessidade de reflexão sobre a troca de conhecimento na sociedade actual, à luz de uma nova ordem comunicacional instalada pelos media, com especial enfoque no papel da televisão, surge no centro do debate: uma nova sociedade de interconhecimento está para nascer?A televisão como instrumento que veicula realidades globalmente tão diversas, determina uma nova evolução nas interacções sociais. A realidade é o fio condutor da informação mas também do entretenimento. Ambos determinam a relação da televisão com os acontecimentos sociais que representa. Mais difícil de determinar é sem dúvida a relação entre o 'meio' e os fenómenos sociais que aflora, mas que dificilmente aprofunda. Embora de um modo privilegiado possa dar a ver várias perspectivas de uma realidade concreta, o carácter pluridimensional do terreno social não se compadece de abordagens 'rasantes'. De qualquer modo, a experiência mediatizada de acontecimentos (mais ou menos distantes) relatados pela informação noticiosa, tem como efeito a sua entrada na vida quotidiana. A rede dessa experiência surge assim na sequência das imagens visuais que a televisão difunde. 'Janela sobre o mundo', como alguns lhe chamam, a televisão cria os novos cidadãos televisuais. À distância, somos todos observadores não participantes de qualquer realidade social. Contribuiremos nós por isso para uma nova sociedade de interconhecimento, investidos que fomos neste papel de cidadãos televisuais? Ou será melhor falar de uma sociedade invísivel, que caminha para um 'nós' ao mesmo tempo que se afasta de um outro? Cada vez mais coabitamos um só mundo, mediaticamente posto em contacto, testemunha de si próprio mas não necessariamente actor social a tempo inteiro.

A projecção do presente numa nova geografia situacional do quotiano
Estar em todo o lado ao mesmo tempo sem o dispêndio (económico, social, moral) de sair de casa tornou-se uma situação comum  ao cidadão do final do séc.XX. A televisão leva até ao seu espaço privado um público global, formando uma realidade corrente e homogeneizada, reconhecível mas desligada da vida quotidiana. Através da crescente globalização do 'meio', os cidadãos têm acesso a cenários distantes com os quais poderão nunca entrar em contacto pessoal - nem com os lugares nem com as populações que visionam. Como refere Joshua Meyerowitz (1), "Cada vez mais os media transformam-nos em audiências "directas" de desempenhos que ocorrem noutros lugares e dão-nos acessos a audiências que não estão "fisicamente presentes".
Esta janela sobre o mundo tornou-se um ícone na paisagem electrónica que paulatinamente vai estruturando a consciência global. Nesta ligação com o todo, corre-se de um sítio para outro, de uma história para outra, de um discurso viaja-se para outro, num "zapping" constante. A televisão tem o poder de nos projectar  no presente e de nos familiarizar com acontecimentos que ocorrem num mundo agitado  por uma turbulência de que somos testemunhas. O espectador é um "zapper" que está em toda a parte mas sem presença corpórea. Viajante ou turista, o que fará ele deste poder da ubiquidade? Poderá sempre agitar grupos de opinião, e utilizar a sua esfera de influência e os seus espaços de circulação para gerar movimentos de apoio e/ou repúdio às realidades que presencia - à distância. A sua consciência tende a ser reflexiva relativamente ao que o rodeia, e neste sentido a identidade pessoal atravessa também uma mudança importante, onde a auto-observação e a auto-interrogação desempenham papéis fundamentais.Mas a influência do indíviduo nos sistemas sociais é difícil de estabelecer, pois a sua qualidade primordial é ser espectador, num mundo onde a experiência mediada, como lhe chama Anthony Giddens, não tem fronteiras: "Os eventos distantes podem tornar-se tão familiares, ou mais, do que as influências próximas, e integrarem-se no enquadramento da experiência pessoal. As situações à 'mão' podem de facto ser mais opacas do que os acontecimentos de grande escala que afectam milhões de pessoas. (...) A aparência, personalidade e políticas de um dirigente  político mundial podem ser mais conhecidas de um dado indíviduo do que as do vizinho do lado. Uma pessoa pode estar mais familiarizada com o debate sobre o aquecimento global do planeta, do que com as razões porque pinga a torneira da cozinha. Tão-pouco os fenómenos remotos ou de grande escala são necessariamente factores apenas vagamente "no pano de fundo" da constituição e identidade psicológicas de um indíviduo". (2)O eu e a sociedade interrelacionam-se assim através de um 'meio' global, onde os contextos de interacção são diversificados. A consciência tenderá a ser reflexiva, e neste sentido os acontecimentos e formas de experiência mediada determinarão condutas e opções de comportamento, e claro, novas sociabilidades.

A televisão como forma de conhecimento dominante no mundo de hoje
A televisão e os media em geral tendem cada vez mais a estruturar o conhecimento. Posto em marcha o seu processo de distribuição, a televisão filtra e enquadra a actividade humana e social, produz sentidos, molda discursos, representa e enfatiza algumas informações fundamentais. Karl Popper elaborou uma proposta - "Uma lei para a televisão" - que se encontra numa entrevista publicada em 1992, onde o filósofo aconselha: "O que as pessoas da televisão devem aprender a partir de agora é que a educação é necessária em qualquer sociedade civilizada e que os cidadãos de uma tal sociedade (...) não são produtos do acaso mas de um processo educativo. (...) A televisão tornou-se hoje em dia um poder colossal; pode mesmo dizer-se que é potencialmente o mais importante de todos. Não pode haver democracia se não submetermos a televisão a um controle, ou, para falar com mais precisão, a democracia não pode subsistir de uma forma duradoura enquanto o poder da televisão não for totalmente esclarecido". (3)Este poder opera-se não através da linguagem da coerção mas sim através da linguagem da sedução. Ou seja, vivemos através da televisão uma realidade tecnológica que, à partida, nos seduz; ao criar tecnologias de subjectividade o 'meio' por sua vez vai criar os novos cidadãos televisuais. E esta é a grande viragem operada pela televisão que, com uma forma própria de inteligência, sentimentos gerados por simpatia comunicacional e princípios de dinâmica de crescimento, aparece aos olhos dos cidadãos televisuais e com eles faz o jogo mediático, cujos componentes emergem em vários tipos de programação, desde a informação ao entretenimento: o humor, o excesso, o espectáculo, o sonho, o drama, o horror, o suspense o "thriller", a surpresa. A emoção transmitida dará ao cidadão televisual uma consciência do tempo actual? e leva-o a reflectir sobre aquilo que vê? A sensibilidade do eu-em-relação surge como importante nesta discussão. Numerosas são as situações que causam intromissão crescente nas consciências. A emoção não deve ser limitada à esfera privada, já que cada vez mais ela é vivida colectivamente. Veja-se, por exemplo, o papel que desempenha a televisão no momento das catástrofes naturais, ou dos acontecimentos sangrentos. Quando vemos soldados nos palcos de terra, ou cidadãos atingidos por atiradores furtivos, ou reféns exibidos  perante as câmaras, somos tomados por solidariedade para com estes grupos. O efeito da realidade surge ainda acentuado pela sua visão imediata, e pela sua difusão maciça que socializa e globaliza essa realidade. Michel Maffesoli fala a propósito, de uma ambiência afectiva, onde as penas, e os prazeres, são experimentados em comum: "a televisão permite vibrar em comum. Choramos, rimos, pateamos em uníssono, e assim, sem que estejamos realmente na presença uns dos outros, cria-se uma espécie de comunhão, cujos efeitos sociais estarão ainda por medir". (4)O indíviduo que daqui parece emergir não existe senão para os outros. Para o melhor, ou para o pior (como temia Popper), vai definindo-se assim uma nova ordem social, situada numa esfera comunicacional que permite viver e entrar em 'rede' com os outros, mesmo que à distância e por controlo remoto.Fundada sobre o princípio individual, esta nova ordem reencontra o princípio relacional das sociedades tradicionais, onde o indíviduo não vale senão em função do grupo. Na nova ordem comunicacional, e de acordo com a sensibilidade imanente, 'comunicar visa menos operar uma transferência de conhecimentos do que criar laços: tornar comum". (5)Ao mesmo tempo, o grande apelo da tecnologia permite ao indíviduo desprender-se das suas memórias e dos seus pensamentos, dando-lhe em troca muitas outras memórias, muitos outros pensamentos e outros 'seres' televisuais. A televisão parece assim ocupar-se de um certo reencadeamento do código cultural humano, segundo a lógica da clonagem, transcrição e resequência, análoga à da genética. O gene da TV vai portanto ocupando-se de assuntos televisuais para as massas, preparando-as para a fase seguinte da cultura pós-TV contemporânea - onde a realidade virtual já se anuncia e onde se esperam novos modos de transmissão e recepção, já que desde a sua invenção a televisão tem sido usada numa base limitada.De qualquer modo isto é apenas o princípio do pensamento crítico sobre televisão no final do séc.XX, cuja discussão tem terreno fértil pela frente.

A realidade objecto da informação e do entretenimento e protagonização da sociedade
Situados num universo caracterizado cada vez mais pela circulação da informação, e portanto pela circulação de sentidos, os cidadãos vêm-se confrontados quotidianamente com os mais variados conteúdos (os assuntos televisuais). Todos os programas que povoam os nossos ecrãs falam uma linguagem que estabelece novos códigos e signos, que ajudam a definir uma realidade que mobiliza a vida social.As rotinas do jornalismo combinam-se regularmente para seleccionar certas versões dos acontecimentos em detrimento de outras - nesta produção de informação, a objectividade é a bússola mas as tecnologias de subjectividade são a sua ferramenta. Quotidianamente são identificados protagonistas e assuntos, e sugeridas atitudes  em relação aos mesmos. Mas, para além da experiência directa, aquilo que no mundo faz notícia, é já uma imagem mediática, composta a partir de princípios de selecção, ênfase, e apresentação, do que existe, acontece e importa. As imagens mediáticas organizam assim o mundo tanto para os jornalistas que o reportam, como para os cidadãos seus receptores. Mas na quantidade sincrónica de imagens incessantes, o fluxo de informação permanece unilateral e os indíviduos carecem de influência ou poder sobre aquilo que constitui a informação. Também neste sentido, o mundo exterior, como matéria, pode ser um lugar distante, onde a nossa acção não chega. Mas, em contrapartida, o contacto é privilegiado. Vivemos assim uma vida social, contextualmente situada num tempo e num espaço, cada vez mais permeável ao contacto 'mediático' com outros lugares e outras vidas colectivas. Nessa variedade de contacto surge favorecida a comunhão - mesmo que silenciosa - com outras gentes e culturas.A televisão leva até à esfera privada vários tipos de informação, todos eles permeáveis ao conceito do espectáculo. Sobre o facto é conhecida a opinião de críticos e teóricos, onde é sintomática a de Niel Postman: "a televisão está a caminho de transformar a nossa cultura numa vasta arena para o "show-bizz". O problema não é que ela nos ofereça divertimentos, mas que todos os assuntos sejam tratados sob a forma de "espectáculo", explorando a excitação sensorial, sobretudo visual". (6)Contudo, como observa Gilles Lipovetsky "Protestar contra a espectacularidade e a informação acelerada não modificará em nada as tendências em curso (...). Desejemos, em primeiro lugar, a melhoria da qualidade da imprensa escrita, antes de anatemizarmos a superficialidade e o "show business" do audiovisual." (7) Sem querer discutir os caminhos dos meios de comunicação de massa, o que aqui importa salientar é que a televisão é geradora, através do conceito de 'espectáculo' aliado à realidade, de uma protagonização da sociedade no seu todo, e dos indíviduos que a constituem.
O que é que a televisão altera na relação entre as pessoas? Representa o 'meio' um poder de união entre elas? Cimentará os seus valores? A encenação da comunicação e do sentido persegue - como refere Baudrillard - uma irresístivel desestruturação do social? Se, e parafraseando Mc Luhan (8), "medium is the message", não chegámos ao momento de pensar no devir das sociabilidades à luz da nova experiência mediada?Na modernidade os cursos de acção a tomar pelo indíviduo e pela sociedade são muitos e todos eles envolvem riscos. Ulrich Beck (9) caracteriza-a como uma "sociedade de risco", onde o curso da acção individual e colectiva não está predestinado, mas aberto a acontecimentos contigentes. Viver numa tal sociedade é escolher entre alternativas e finalmente entre  "mundos possíveis". O uso da informação e do conhecimento não já  local, mas global, orienta as escolhas na acção humana. E pela primeira vez na história da humanidade o indíviduo entra em relação com a sociedade através de um 'meio' globalizador. Mesmo à distância e por controlo remoto, o ideal comunitário à escala do globo pode estar na génese de uma nova sociedade de interconhecimento.E neste campo, o futuro revelará uma cada vez maior abertura ao mundo, interligado numa teia comunicacional de que para já se prevê a complexificação.
CRISTINA L. DUARTE
  
(1) "No sense of place" in Anthony Giddens, "Modernidade e Identidade Pessoal"
(2) Anthony Giddens, "Modernidade e Identidade Pessoal"
(3) Karl Popper, John Condry, "Televisão: Um Perigo para a Democracia"
(4) Michel Maffesoli, "La Contemplation du Monde"
(5) Pierre Babin, "Linguagem e Cultura dos Media"
(6) in Pierre Babin, Op.Cit.
(7) Gilles Lipovetsky, "O Crepúsculo do Dever"
(8) Marshall Mc Luhan, "Pour Comprendre les Media"
(9) in Anthony Giddens, Op.Cit.

Bibliografia
Babin, Pierre, Linguagem e Cultura dos Media, Lisboa, Bertrand Editora, 1993
Baudrillard, Jean, Simulacres et Simulations, Paris, Editions Galilée, 1981
Eco, Umberto, Obra Aberta, Lisboa, Difel, 1989
Giddens, Anthony, Modernidade e Identidade Pessoal, 1ª edição, Lisboa, Celta Editora, 1994
Lipovetsky, Gilles, O Crepúsculo do Dever - A Ética Indolor dos Novos Tempos Democráticos, 1ª edição, Lisboa, Publicações D.Quixote
Lopes, João, Teleditadura - Diário de um Espectador, Lisboa, Quetzal Editores, 1995
Maffesoli, Michel, La Contemplation du Monde, Paris, Grasset, 1993
Mc Luhan, Marshall, Pour Comprendre les Media, Paris, Mame/Seuil, 1968
MONDO 2000, nº 11, São Francisco, 1993
Popper, Karl, Condry, John, Televisão: Um Perigo para a Democracia, 1ª edição, Lisboa, Gradiva, 1995
Práticas Culturais dos Lisboetas, Coord. José Machado Pais, Edições do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, 1994
Transmission - Towards a Post-Television Culture, 2ª edição, Londres, sage Publications, 1995

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