O confronto II
Por Catarina Frade Moreira
Anatomia do Inferno é um filme [de Catherine Breillat] sobre a libertação da Mulher. A Mulher do filme assume-se desde logo como sujeito sexual, como sujeito de desejo. Contra a sistemática negação da existência de um desejo sexual feminino, reflectida também na arte, a Mulher ambiciona demonstrar ao Homem que tem desejo e que o seu corpo, a sua nudez e o seu sexo não são obscenos e temerosos. Para isso, de modo a demonstrar a não obscenidade da sua pessoa, apresenta-se durante quase todo o filme, e nas quatro noites em que o Homem a visita, completamente exposta, magnificamente desnudada. Se as roupas foram ao longo do tempo usadas para cobrir a nudez e esconder as “vergonhas” restringindo o corpo e conformando-o, a Mulher de Anatomia do Inferno decide expor a sua nudez. E é mediante esta exposição que o que outrora foi obsceno deixa de o ser, numa pose simultaneamente de afronta e total abandono. Nessas noites, a Mulher está praticamente confinada à Cama, se bem que a observemos por vezes no corredor, abrindo a porta ao Homem, ou na casa-de-banho, na sanita.
A Cama é um dos elementos simbólicos do filme. Representa, por um lado, uma prisão. É feita de ferro, verde, e quer na sua cabeceira quer nos seus pés várias grades ou barras de ferro conferem a sensação de aprisionamento. Neste sentido, e dado que as barras que compõe a Cama constituem um elemento fálico elas reforçam a ideia do jugo da Mulher pelo falo, pela autoridade patriarcal. O falo é então o signo de poder da cultura. Por outro lado, a Cama simboliza a Cruz - composta por duas barras cruzadas - onde Cristo foi crucificado. E, assim, há inegavelmente um paralelismo entre a Mulher e Cristo. Aliás, na parede do quarto da Mulher existe a figura de um Cristo pregada na parede. Este adereço cénico serve para tornar essa comparação ainda mais rígida funcionando como um espelho da Mulher. Na segunda noite de visita, este paralelismo torna-se mais acutilante devido à sucessão de imagens entre o crucifixo na parede - Cristo na cruz ferido e sangrando na cabeça, mãos e pés – e a Mulher na cama, ferida no pulso e sangrando devido à sua menstruação. De salientar ainda que nesta sucessão de imagens também o Homem possui ao pescoço um fio com uma cruz, o que poderá também legitimar e reforçar o elemento comparativo entre a Mulher e Cristo.
A postura da Mulher é, desde o início, uma postura sacrificial, masoquista sem dúvida, mas altiva, e por isso de não vitimização. O espectro da sua morte está ao longo do filme sempre latente, e ela sabe-o. A Mulher sabe que o jogo que propôs terá consequências radicais. Ela não sairá incólume, pois reivindicar o desejo sexual e expor aquilo que é socialmente considerado obsceno -o corpo e o sexo - demonstrando ao Homem que a sua libertação e crescimento passam pela identificação com a Mulher e não pelo antagonismo, desprezo e humilhação, é algo de profundamente revolucionário e audacioso. A violência é sempre o último recurso para quem sabe ter perdido o seu poder e a sua estrutura identitária, a consciência de si. Até a intimidade se estabelecer entre ambos a única opção possível, ou forma de linguagem, ao Homem é a violência. Na madrugada da segunda visita do Homem à Mulher, esta diz-lhe:
Mulher: Last night you wanted to kill me. You fought that urge a long time.
Homem: How do you know?
Mulher: It’s an urge all men have. That’s how they are. That’s why they lie beside us. The veils they adorn us with ritually, anticipate our shrouds. But you’re not part of that. You know nothing of it. You don’t know the harm you could do.[A Cidade das Mulheres retoma a publicação do trabalho de CFM sobre o filme da cineasta Catherine Breillat, Anatomia do Inferno. Ver cont. «Génese e Cinema III - 25.06.2007]