13.6.06

O papel precursor de Antónia Gertrudes Pusich para o movimento feminista – Parte III

É na imprensa que se pode ler parte do pensamento feminino sobre a situação da mulher e o seu papel na sociedade oitocentista. Quando em 1849 surgia a Assembléa Litteraria– Jornal D’Instrucção , o primeiro jornal dirigido e fundado por uma mulher, Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883), tal facto criava um marco – um antes e um depois na divulgação da escrita feminina - já que a partir daí os nomes femininos passavam a constar regularmente junto aos respectivos artigos, em vários periódicos, e isto não só na imprensa feminina. Na senda de Pusich, numerosas mulheres vieram a destacar-se nos jornais literários, de moda, noticiosos ou políticos, o que representou o início de uma luta pela sua visibilidade e pelo seu reconhecimento para além do agregado familiar, onde se desenvolvia toda a sua vida enquanto esposas, mães, ou filhas. O mundo lá fora, do trabalho, da economia, da política, enfim, dos poderes formalmente constituídos, era-lhes na realidade vedado, mas através da sua presença na imprensa, lado a lado com os homens, as mulheres sairam da sombra e partilharam um espaço público antes reservado ao género masculino. Essa intervenção pública através da escrita ganha contornos definidos, sociais e políticos, e suscita o diálogo entre os pares, fazendo da mulher uma nova actriz social. Sobre isto, o ensaísta D.António da Costa escrevia «Neste grandioso teatro, que se chama a pátria portuguesa, não basta que a mulher seja espectadora, é necessário que represente o seu grandioso papel».[A Mulher em Portugal, livro publicado postumamente, em 1892]
O jornalismo escrito por mulheres é de grande relevo na segunda metade do século XIX para a construção do feminismo de primeira vaga, momento histórico em que certos nomes como o de Antónia Pusich, começam por definir um caminho pioneiro naquilo que virá a ser a consciencialização da mulher, e a luta para alterar o seu estatuto (familiar, económico, social, político, jurídico e legislativo), que irá mais tarde ajudar a sedimentar o combate das republicanas pelos direitos civis, nomeadamente pelo direito ao voto. A luta de Antónia Pusich como mulher representante do sector mais esclarecido da sociedade foi essencialmente pelo acesso à instrução, elemento central para uma tomada de consciência colectiva e uma das principais reivindicações oitocentistas. Para além de A Assembléa Litteraria, ela fundou também outros dois jornais: A Beneficiência (1852/5) e A Cruzada (1858).
Nascida na ilha de São Nicolau, Cabo Verde, ela era filha de um oficial da armada de Ragusa, um general que pertencia ao império Austro-Húngaro, homem culto, que tinha vindo para Portugal a convite do embaixador português em Turim. António Pusich esteve ao serviço de D.Maria I, casou em Queluz e Antónia foi a penúltima dos seus seis filhos. Sendo nomeado para governador em Cabo Verde, é aí que a sua filha vem a nascer. Depois, já em Lisboa, ela viveu no número 265 da Rua de S.Bento (frente à Assembleia da República), na freguesia de Sta.Isabel. Antes de dirigir a Assembléa Litteraria, havia colaborado com a Revista Universal nas décadas de 30 e 40. Mas ela não só tem a coragem de fundar um jornal, como através deste veicula esta ideia de que a única maneira de a mulher ter igualdade de direitos é através de uma liberdade intelectual. O jornal é sempre um veículo da necessidade de instrução e de melhoria da condição feminina. A sua abertura de espírito era muito grande, sobretudo no contexto histórico de 1849. Frequentadora da galeria das senhoras na câmara dos deputados, ela queria participar na vida política – esta fazia parte do seu conceito de civismo e de cidadania - e saber quais os assuntos prementes que o país discutia. Intelectualmente, Antónia Pusich é de facto uma precursora do movimento feminista.

1.6.06

O tempo das mulheres - Parte II

«Eu não sei se alguma das minhas leitoras se lembrará ainda de ter visto uns enfeites de fitas, e de fitas e flôres que se usaram no princípio do século passado, mas se não os viram entre os despojos do guarda-roupa elegante de uma avósinha querida, viram-nos com certeza nos retratos d’essa epocha. Pois esse enfeites voltam a usar-se, tendo apenas de novo a qualidade dos aprestos. Os francezes chamam-lhes coiffures du soir; não sabemos se já téem denominação em portuguez. (...)
Terminamos esta chronica dizendo ás nossas gentis leitoras que actualmente o cunho essencial da verdadeira elegancia é a apparencia de uma grande simplicidade, simplicidade que chegue mesmo a similhar negligencia.
A tesoura d’outros tempos está completamente fora de uso.»
[In «Elegancia e Bom Gosto – Jornal de modas, bordados e outros trabalhos artísticos», Suplemento ao O Petardo, 15 de Abril de 1908]


Este breve trecho do suplemento «Elegancia e Bom Gosto» já da primeira década do século XX revela o carácter cíclico da moda, e a importância de reconhecer no passado a explicação para o presente - uma vez aqui, a construção de uma memória no que ao vestuário toca, é algo tão importante como a construção da escrita feminina nos jornais do século XIX. Não são apenas os papéis sociais e os hábitos relatados pela e na aparência – onde, no caso feminino, a liberdade de movimentos depende em primeira instância do que se veste - é todo um processo civilizacional que esta deixa entrever. A importância da moda como um território social onde a mulher era relativamente livre, vai crescendo ao mesmo tempo que se desenvolve a escrita para mulheres, que podemos pesquisar em jornais de época, nomeadamente naqueles que dizem ainda respeito à primeira metade do século XIX, como «O Toucador – Periódico sem Política dedicado às Senhoras Portuguesas», periódico destinado ao público feminino e que foi inteiramente escrito nos seus sete números de Fevereiro e Março de 1822 por Almeida Garrett, seu fundador e único redactor, à data com 23 anos. A um de Fevereiro daquele ano «O Toucador» dissertava assim sobre moda e civilização, numa coluna do periódico intitulada «Modas»:
«Só nossos primeiros pais andaram perfeitamente nús. E nem isso foi sempre; porque de certo tempo por diante cobriram-se com folhas de árvores. (...). Começou porém a civilização; e com ela o desejo de tornar agradável, e cómodo, o que até ali não
fora necessário. (...) Principiaram a usar-se géneros mais acomodados, e susceptíveis de belas, e engraçadas formas.
Houve pessoas, que se distinguiram na invenção delas; e eis aqui a origem das modistas. Houve nações, cujo gosto particular se avantajou neste ponto: os outros povos os imitaram; e tal foi a origem das modas estrangeiras.»[O Toucador/red.Almeida Garrett, Lisboa (1) Fev. 1822, p.4-6, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág.37.]
No ano seguinte, em 1823, apareceria o «Periódico das Damas» que publicou seis números até 1824, dirigido por outros autores. Mas cada um destes periódicos representava duas imagens de mulher da alta sociedade, uma mais festiva e outra mais monótona, destinando-se originalmente a dois tipos de público femininos diferentes. «O Toucador» é considerado o primeiro periódico destinado ao público feminino em Portugal no século XIX, logo seguido pelo «Periódico das Damas»: «O pequeno formato e a escassez de números vindos a lume é a única semelhança entre as duas publicações. Em tudo o resto diferem: na personalidade dos respectivos autores, nos objectivos que visam, no tipo de mulheres a que se destinam e, subjacente a tudo isto, na imagem da sociedade que veiculam. (...) Cada um deles representa duas imagens de mulher da alta sociedade e do seu papel social, que naquele momento coexistem e se chocam certamente, mas que, uma e outra, vão persistir por muito tempo. Tanto tempo que as ainda as encontramos hoje. E já lá vão mais de cem anos!» [in Leal, Maria Ivone, Um Século de Peródicos Femininos: arrolamento de peródicos entre 1807 e 1926, Cadernos da Condição Feminina, nº35, Comissão para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres, CIDM, Lisboa, 1992, pág.27.]
Um outro periódico, «O Correio das Damas – Jornal de Literatura e de Modas», começou a publicar-se em 1836, sendo aquele que mais longevidade teve ao longo do século passado (publicou-se até 3 de Dezembro de 1852). Uma colaboradora, que não assinava apelido, tão-só o seu nome próprio, Elvira de*, escrevia no jornal, a 12 de Janeiro de 1836 sobre uma moda em particular referindo o efeito que o seu autor conseguiu obter com a sua criação, descobrindo-se aqui uma nítida e esclarecida visão sobre aquilo que é a moda de autor:
«essa engenhosa e delicada invenção de xailes (vénetiens). Imagine-se um xaile branco, quadrado, e muito grande, de lã da Índia, de uma elasticidade admirável, bordado e cercado de uma renda da mesma lã, tendo aquela dois palmos de altura, e um centro semelhante aos desenhos góticos e julgue-se do efeito que um traje tal enfeite produzirá sobre uma elegante toilette de visita ou de passeio!!
O autor deste delicado enfeite, a julgar-se pelo efeito que vai produzindo, parece ter tido somente em vista o fazer realçar mais, se é possível, o belo sexo.»
[Correio das Damas, Lisboa, 12 Jan. 1836, p.2, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág. 47. ]
Este, e outros periódicos destinados ao público feminino alfabetizado, revelam-se muito interessantes para o estudo da moda e dos costumes sociais da burguesia lisboeta do século XIX. Mas sabe-se que não eram apenas lidos em Lisboa, pois podiam-se fazer assinaturas de «O Correio das Damas», por exemplo, em Braga, Moncorvo, no Porto, na Régua e em Setúbal.
E neste regresso ao passado da moda através dos periódicos femininos lê-se no «Jornal das Senhoras» o seguinte excerto, tão actual apesar dos seus cem anos, o que faz também pensar numa certa visão de futuro a partir do início de um novo século:
«A Moda actualmente tem um carácter electivo; deixou de ser a exclusivista doutros tempos, em que uma fazenda, uma forma de vestido, uma cor, atravessavam incólume uma estação inteira, de modo a ser condenado e banido como de lesa bom gosto tudo, que não pudesse incluir-se no chavão.
A Moda então tinha uniforme, decretava tiranicamente preferências e exclusões, amava doidamente o status quo e o que ousasse faltar a estes preceitos era tido como ridículo ou subversivo.
Hoje nas manifestações caprichosas da inconstante deusa, para qualquer objecto receber a sua sanção baste que realize a suprema condição ficar bem.»
[Cecília de Maugérar, «Modas», Jornal das Senhoras, Lisboa (2) 20 Out. 1904, p.3-4, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, pág. 99.]
A jornalista de moda de então refere ainda que a «moda renova incessantemente os ciclos, apresentando de espaço a espaço os mesmos tons característicos, os mesmos factos e leis predominantes», colocando-se assim de novo o enfâse no carácter cíclico da moda. Foi aliás esta relação entre o ritmo temporal e o modo de vestir que deu origem ao território da moda, cujo carácter efémero venceu sempre a persistência do traje no tempo.
Elina Guimarães (1904-1991) em Mulheres Portuguesas ontem e hoje faz um regresso ao passado para classificar e descrever o feminismo nascente oitocentista, que apelida de «feminismo tácito»: «As ideias liberais introduzidas no século XIX vieram, como não podia deixar de ser, influir na condição feminina, embora este objectivo não fosse primordial.
Logo em 1822, nas Cortes Constituintes, o deputado pelo Brasil, Dr.Borges Barros, propôs que se desse direito de voto às mães de seis filhos. Porque "ninguém dá mais a um país do que quem lhe dá seus cidadãos". A ideia nem sequer foi discutida, mas... fora lançada.»
[Guimarães, Elina, Mulheres Portuguesas ontem e hoje, Cadernos da Condição Feminina nº24, Lisboa, 1989.]
Na primeira metade do século XIX, a maior parte das redactoras e colaboradoras destes periódicos escondiam a sua identidade por detrás de pseudónimos, de nomes de familiares ou simplesmente de várias iniciais. Se elas eram uma minoria dentro do grupo de mulheres que trabalhava no século XIX, também o público a quem se destinava estes periódicos constituía uma minoria de nobres e de burguesas. Como refere Ivone Leal «a maioria da população feminina era formada pelas rurais, pelas mulheres e filhas de artífices habitando nas cidades e vilas e ainda pelo incipiente grupo de operárias (no relatório apresentado às Cortes em 1882 declara-se que nas 1031 fábricas existentes trabalhavam 14 934 pessoas, das quais 4 222 eram mulheres)». Apenas mediante a consulta de outras fontes se poderá definir um quadro mais global da condição feminina no século XIX português - mas em Portugal, como em Inglaterra ou França, «há na primeira metade do século XIX um discurso feminista levado a cabo por homens (...)».
[Couto-Potache, Dejanirah, «Les Origines du Feminisme Au Portugal», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982, p.450.]
É através do estudo dos periódicos femininos que se vão «descobrindo, sobretudo, atitudes que manifestam profundas alterações de mentalidade. É assim que se pode ir assistindo gradualmente ao modo como as portuguesas cultas vão deixando de se envergonhar de o ser, melhor dizendo, deixam de esconder essa sua condição.» E a melhor forma para, em meados do século XIX, veicular o discurso da emancipação das mulheres de modo a colocá-lo na «agenda» da sociedade, seria tornar central a temática da educação e da instrução das mulheres. É nesta ordem de ideias que surge em 1849 o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher em Portugal: «A Assembla Litteraria - Jornal D'Instrucção» de Antónia Gertrudes Pusich.