29.12.06

A Carta - IV

Hanna Arendt (n.Alemanha, 1906 -1975) escrevia no seu livro «On Revolution» (1963): «Guerras e revoluções caracterizaram até agora a fisionomia do século XX». Mulher da filosofia e da teoria política salientava que os homens não nascem livres e iguais - a liberdade e a igualdade são opções políticas. Por ser judia, viu-se privada do direito de apresentar na Alemanha nazi a sua dissertação sobre o conceito de amor e o pensamento de Santo Agostinho, fugindo para Paris, onde também trabalhou na ajuda aos refugiados judeus. A obra teórica de Hanna Arendt centralizou-se na política, nos regimes totalitários e autoritários, os regimes que mais colocam em causa os direitos humanos.
Para além dos direitos consagrados já nos textos internacionais e legais, necessários para que homens e mulheres se realizem plena e livremente, e pelos quais teremos de continuar a zelar - para o bem comum, pois a existência de pessoas destituídas de direitos humanos enfraquece a sociedade no seu todo - nada impede que novos direitos sejam consagrados no futuro, nomeadamente aqueles que concernem os objectivos de uma democracia paritária - patentes já em recomendações da comunidade europeia aos Estados membros, sobre conciliação do trabalho e da vida familiar, e participação equilibrada de homens e mulheres na tomada de decisão política e pública.

Entre 1975 e a actualidade realizaram-se algumas grandes conferências mundiais sobre mulheres: Cidade do México, 1975; Copenhaga, 1980; Nairobi, 1985; e Pequim, 1990. Ali, os Estados participantes comprometeram-se a incluir a dimensão do género em todas as instituições, decisões políticas, acções de planeamento e tomadas de decisão. A Plataforma de Acção de Pequim identificou 12 áreas fundamentais, que representam os principais obstáculos ao progresso das mulheres e por isso carecem de medidas concretas por parte dos Governos e da sociedade, a saber: mulheres e pobreza; educação e formação das mulheres; mulheres e conflitos armados; mulheres e economia; mulheres no poder e nos processos decisórios; mecanismos institucionais para o progresso das mulheres; direitos humanos das mulheres; mulheres e meios de comunicação social; mulheres e ambiente; e raparigas.
Numa sessão especial convocada pela Assembleia Geral, entre 5 e 9 de Junho de 2000, em Nova Iorque, foram examinados os progressos alcançados com a plataforma de Pequim. Subordinada ao tema «Mulheres 2000: Igualdade de Género, Desenvolvimento e Paz para o Século XXI», a sessão desembocou numa Declaração Política e num documento final - «Novas acções e iniciativas destinadas a aplicar a Declaração e Plataforma de Acção de Pequim», onde os Governos e a comunidade internacional reafirmaram o empenho na realização dos objectivos de Pequim e no estabelecimento de uma agenda comum para o desenvolvimento, com a igualdade de género como princípio subjacente – em todas as áreas e a todos os níveis. Os participantes acordaram na adopção de 199 medidas a ser realizadas aos níveis nacional e internacional, pelos Governos, entidades do sistema das Nações Unidas, organizações internacionais e regionais, não governamentais, e outros agentes da sociedade civil. Para muitas das acções foram identificados os seguintes grupos alvos, ou destinatárias preferenciais: mulheres idosas e de meia idade; adolescentes e mulheres jovens; refugiadas e requerentes de asilo; mulheres indígenas; empresárias e trabalhadoras independentes; mulheres migrantes; mulheres rurais; mulheres com deficiência; e mulheres chefes de família.

4.12.06

A Carta - III

Pelos textos de Elina Guimarães perpassava toda a dedicação de uma vida a escrever sobre as mulheres, as suas causas, as suas vitórias, sempre divulgando os avanços na legislação, e os debates sobre a acção da mulher na sociedade e na cultura. Contava a sua experiência, o seu conhecimento, as suas reflexões, e essa era a matéria que alimentava os seus interessantes artigos. Recordava no Diário de Notícias em 1987 o que significava para uma mulher ser formada em Direito em 1926: «quando me formei em Direito, esse diploma não me dava a possibilidade de participar em qualquer eleição e a maioria das profissões eram-me vedadas. Quando casasse perderia parte dos direitos sobre a minha pessoa e bens e não tinha direito sobre os meus futuros filhos. O feminismo estava representado por uma única associação e os homens troçavam. No entanto, eu acreditei no futuro e lutei por ele.» (Diário de Notícias, 10.03.87, p.28)
A ideia de futuro continua a guiar mulheres e homens por todo o mundo. Um mundo melhor, sem pobreza, sem violência. Sem opressores nem oprimidos. Sem discriminação de género, ou social, ou racial, ou étnica, qualquer uma delas empobrecedora das nações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos vem fornecer no século XX senão o mais importante, um dos mais importantes documentos para a matriz civilizacional – que serviu de base a dois tratados internacionais, o dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – vertido na Constituição dos países que a ratificaram, como é o nosso caso. Não é demais citar um dos parágrafos que constitui o seu preâmbulo, bem como o Art.1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; (...).
«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados da razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
Já no Renascimento havia quem sonhasse com o projecto «utópico» de uma sociedade livre feita de indíviduos livres, numa atitude crítica perante a sua actualidade, ou, se quisermos, a agenda (histórica) - tal como a viveu o humanista e escritor Thomas More, que retratou a organização ideal da sociedade no seu romance político Utopia, publicado em 1516, cuja acção se concentrava numa ilha imaginária. «Os Utopianos detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem, que contudo espécie alguma de animais ferozes pratica tão frequentemente como o homem» escreveu na página 114. Deste género literário utópico, alimentado por uma dupla de narradores que funcionam como alter-egos de More, muito haveria a dizer. Para já, saliento um detalhe: um destes narradores, Rafael Hitlodeu, se bem que produto da ficção, nasceu em Portugal, fala de uma existência concreta, baseada nas suas viagens com homens reais e nas conversas que entretece com figuras históricas - como Américo Vespúcio (nasceu em Florença em 1451, e morreu em 1512; visitou a América depois de Cristovão Colombo, e More inspirou-se no relato das viagens de Vespúcio para escrever o seu romance). Portanto, cá está de novo o papel do navegador português na construção da Utopia: como descobridor de outras ilhas, de outras terras, de outros modos, usos e costumes, enfim, do Outro, que comporta todo um novo mundo de existência de uma sociedade ideal como a que encontramos na obra de Thomas More.

O século XVII assistiu ao Tratado de Vestfália (1648) - que culminou a Guerra dos 30 Anos e garantiu a igualdade de direitos entre as comunidades cristãs católica e protestante no território alemão. Considerado como um dos primeiros instrumentos internacionais com medidas de protecção aos direitos humanos, antecedeu deste modo a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada a 26 de Agosto de 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte francesa. Mesmo sabendo que a Revolução Francesa foi aquela que, na Europa, determinou a queda do Antigo Regime (Ancien Régime) e a entrada na Idade Contemporânea, marcada pela corrente filosófica do Iluminismo e pelos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a cidadania continuava a estar limitada aos homens. Por isso, a senhora Olympe de Gouges, dramaturga, resolveu em 1791 fazer a sua própria revolução, escrevendo e publicando a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ecoando a mesma linguagem, mas aqui dirigida finalmente às mulheres. Dota-a de um preâmbulo, seguido de 17 artigos e de um posfácio, que é como que um abanão: «Mulher, acorda, o sino da razão se faz ouvir em todo o universo, reconhece os teus direitos. (...) Ó mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais vantagens tirastes da Revolução? (...) Temeis que os nossos Legisladores Franceses, defensores dessa moral, por tanto tempo agarrada aos ramos da política, mas que agora está em desuso, possam vos repetir: “mulheres, o que há de comum entre vós e nós?”. Tudo, deveis responder.»