4.12.06

A Carta - III

Pelos textos de Elina Guimarães perpassava toda a dedicação de uma vida a escrever sobre as mulheres, as suas causas, as suas vitórias, sempre divulgando os avanços na legislação, e os debates sobre a acção da mulher na sociedade e na cultura. Contava a sua experiência, o seu conhecimento, as suas reflexões, e essa era a matéria que alimentava os seus interessantes artigos. Recordava no Diário de Notícias em 1987 o que significava para uma mulher ser formada em Direito em 1926: «quando me formei em Direito, esse diploma não me dava a possibilidade de participar em qualquer eleição e a maioria das profissões eram-me vedadas. Quando casasse perderia parte dos direitos sobre a minha pessoa e bens e não tinha direito sobre os meus futuros filhos. O feminismo estava representado por uma única associação e os homens troçavam. No entanto, eu acreditei no futuro e lutei por ele.» (Diário de Notícias, 10.03.87, p.28)
A ideia de futuro continua a guiar mulheres e homens por todo o mundo. Um mundo melhor, sem pobreza, sem violência. Sem opressores nem oprimidos. Sem discriminação de género, ou social, ou racial, ou étnica, qualquer uma delas empobrecedora das nações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos vem fornecer no século XX senão o mais importante, um dos mais importantes documentos para a matriz civilizacional – que serviu de base a dois tratados internacionais, o dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – vertido na Constituição dos países que a ratificaram, como é o nosso caso. Não é demais citar um dos parágrafos que constitui o seu preâmbulo, bem como o Art.1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; (...).
«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados da razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
Já no Renascimento havia quem sonhasse com o projecto «utópico» de uma sociedade livre feita de indíviduos livres, numa atitude crítica perante a sua actualidade, ou, se quisermos, a agenda (histórica) - tal como a viveu o humanista e escritor Thomas More, que retratou a organização ideal da sociedade no seu romance político Utopia, publicado em 1516, cuja acção se concentrava numa ilha imaginária. «Os Utopianos detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem, que contudo espécie alguma de animais ferozes pratica tão frequentemente como o homem» escreveu na página 114. Deste género literário utópico, alimentado por uma dupla de narradores que funcionam como alter-egos de More, muito haveria a dizer. Para já, saliento um detalhe: um destes narradores, Rafael Hitlodeu, se bem que produto da ficção, nasceu em Portugal, fala de uma existência concreta, baseada nas suas viagens com homens reais e nas conversas que entretece com figuras históricas - como Américo Vespúcio (nasceu em Florença em 1451, e morreu em 1512; visitou a América depois de Cristovão Colombo, e More inspirou-se no relato das viagens de Vespúcio para escrever o seu romance). Portanto, cá está de novo o papel do navegador português na construção da Utopia: como descobridor de outras ilhas, de outras terras, de outros modos, usos e costumes, enfim, do Outro, que comporta todo um novo mundo de existência de uma sociedade ideal como a que encontramos na obra de Thomas More.

O século XVII assistiu ao Tratado de Vestfália (1648) - que culminou a Guerra dos 30 Anos e garantiu a igualdade de direitos entre as comunidades cristãs católica e protestante no território alemão. Considerado como um dos primeiros instrumentos internacionais com medidas de protecção aos direitos humanos, antecedeu deste modo a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada a 26 de Agosto de 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte francesa. Mesmo sabendo que a Revolução Francesa foi aquela que, na Europa, determinou a queda do Antigo Regime (Ancien Régime) e a entrada na Idade Contemporânea, marcada pela corrente filosófica do Iluminismo e pelos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a cidadania continuava a estar limitada aos homens. Por isso, a senhora Olympe de Gouges, dramaturga, resolveu em 1791 fazer a sua própria revolução, escrevendo e publicando a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ecoando a mesma linguagem, mas aqui dirigida finalmente às mulheres. Dota-a de um preâmbulo, seguido de 17 artigos e de um posfácio, que é como que um abanão: «Mulher, acorda, o sino da razão se faz ouvir em todo o universo, reconhece os teus direitos. (...) Ó mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais vantagens tirastes da Revolução? (...) Temeis que os nossos Legisladores Franceses, defensores dessa moral, por tanto tempo agarrada aos ramos da política, mas que agora está em desuso, possam vos repetir: “mulheres, o que há de comum entre vós e nós?”. Tudo, deveis responder.»

1 comentário:

Aldina Duarte disse...

"A ideia de futuro continua a guiar mulheres e homens por todo o mundo. Um mundo melhor, sem pobreza, sem violência. Sem opressores nem oprimidos. Sem discriminação de género, ou social, ou racial, ou étnica, qualquer uma delas empobrecedora das nações."

Este é seguramente um sentido para a vida!

Responder para já, enquanto mulher, é ir votar no referendo dia 11 de Fevereiro de 2006!

Até sempre