15.3.11

Experiência de fim de semana (alucinante)... com um cravo vermelho na imaginação

No sábado à noite, Deolinda, a banda, cantava na Galiza. A cantora dedicou «Parva que sou» àqueles que, em Portugal, levaram para a rua os seus protestos, o seu descontentamento, e que, como a personagem da canção, não conseguem fazer planos e resolvem expressar esse mesmo descontentamento. «Sou da geração sem rumo», «sou da geração casinha-dos-pais»,... e por aí fora, num rol de vivências que tanta gente identifica com o seu presente. No final (e mesmo pelo meio) houve muitos aplausos e um cravo vermelho foi atirado a Ana Bacalhau, que o apanha e de imediato parte para a canção seguinte com toda a energia transbordante e domínio da voz que lhe conhecemos (talvez seja esta força interior que faz falta à malta). Este cravo leva-me a pensar neste fim de semana alucinante em que moda, política e cidadania estiveram na ordem do dia. E sempre com a catástrofe do Japão a pairar nas notícias e portanto dentro das nossas cabeças, pois ninguém consegue ficar impávido à destruição provocada pelo terramoto e consequente maremoto.
Portanto, o fim de semana teve de tudo. Só para início de conversa mergulhei no tema «Love» desta 36ªedição da ModaLisboa – que comemora 20 anos. Dos quatro dias de calendário (cujo programa aqui afixei dia a dia) disse ‘presente!’ no sábado, dia 12 de Outubro. Belo dia. Solarengo. Uma viagem de autocarro pacata, a desaguar no Terreiro do Paço, Pateo da Galé, quartel-general da ModaLisboa. Mas o calendário começava do lado do Museu do Design de Moda (que será futuramente um dos melhores da Europa, nas palavras de Bárbara Coutinho, em entrevista recente dada à Sic mulher). O MUDE inaugurou naquele início de tarde as exposições de Valentim Quaresma, Aforestdesign (Sara Lamúrias), Lara Torres e de um grupo de fotógrafos que ali mostrou a sua ‘estação de trabalho’ («Workstation») – o que pode ser ainda visto durante esta e a próxima semana. Quanto a mim, subi juntamente com muitos jornalistas e demais convidados ao segundo andar do museu para assistir ao desfile de Ricardo Andrez. A destacar os 15 mil cubinhos de madeira que o jovem criador utilizou em aplicações nas suas peças para homem - em cotoveleiras, frentes ou costas de camisolas – e a panóplia de fechos de metal dourado, bem como as maxi-impressões «empoeiradas».
E por falar em Dourado, dou aqui um salto ao dia seguinte, domingo, fazendo o bunjee jumping que se impõe na escrita, para falar de um trabalho que acompanho com admiração e gosto. A colecção aqui é sobretudo para nós, mulheres, embora nesta edição Ricardo Dourado tenha feito roupa de homem/rapaz para melhor assim enquadrar o seu tema de ‘género’ com o título: «A girl like a boy like a girl». As suas palavras-chave são: dark, ghost, nomadic, slim, austere, rude boy, gigger. O desfile (penúltimo do calendário, antes de Nuno Gama o ter fechado com a sua colecção para homens muito cosmopolitas) teve como 'introdução' uma série de vestidos negros, longos, usados nas manequins de dedos pintados de verde (...como quem enfia os dedos dentro de uma lata de verniz). A luz era pouco mais do que penumbra. Depois, eis que surgiu um rapaz de cabelos longos, usando um poncho preto, flutuante. A partir daí, a luz subiu e invadiu a passerelle: muitas peças pretas, muitos efeitos com dobra, criando trompe l’oeil sobre estrutura da peça, calça/saia, etc.. As tiras/faixas que Dourado começou no início do seu trabalho por utilizar à volta do corpo da mulher, agora estão soltas e ondulam como caudas de casacos. As assimetrias convivem com outos aspectos mais estruturais da colecção, cuja mancha maior é o negro, coabitando com o azul escuro. Muitos blusões e muitas camisas, longas, longas, quais caudas de vestidos.
Umas horas antes, nesta passerelle, White Tent. abordava o vestuário de trabalho, mas segundo o léxico desta dupla constituída por Pedro Noronha Feio e Evgenia Tabakova, que introduziu elementos novos num fato de piloto ou num casaco de operário. Uma colecção toda ela bem construída, à volta de peças-chave, com mochilas de vários tipos, muitas das vezes do mesmo tecido das peças de vestuário, e em tons de castanho, caqui, verde, cor-de-rosa e preto, nos materiais lã, lã/algodão, algodão e caxemira. Uma gabardine preta mesmo-mesmo daquelas que eu gosto, a lembrar os anos da resistência francesa e que ía mesmo bem com a minha boina. Alô alô. Faço agora ‘agulha’ para outro designer, cujo trabalho sigo com particular interesse, e que assina deste modo as suas peças de autor: «V!tor». A colecção é mista: homem e mulher, em «materiais impressos com padrões de QR Code, em corrosão sobre jersey de composição mista em cor de pele, e em estrutura de tricotagem em lã ». Vítor já trouxe à passerelle do espaço Lab a evocação de outros territórios, como a Grécia ou a Macedónia, e na estação Outono/Inverno 2011/12 ‘viaja’ até à Tanzânia, para se inspirar no poder mágico dos albinos, e colocar em diálogo esta cultura com a comunidade chinesa, criando assim o seu novo look «Tanzjing».
Quem também se inspirou num outro povo para construir a sua colecção e espelhar as suas emoções, dialogando assim com os valores que lhe são mais caros, foi Alexandra Moura..O «povo das estrelas» que habitou a passerelle de Alexandra usou uma linha de calçado em couro (Goldmud), com sapatos onde pequenos detalhes fazem a diferença, como as pequeninas franjas ou os desenhos nas botas da cano semi-alto. Os vestidos de cintura descida, longos, soltos, como os cabelos (Cristina Peixoto) são lindos. Adorámos aquela fusão de uma imagem «forte e inocente, doce e guerreira, infantil e sábia», pontuada pelos traços nos rostos dos/as manequins, em cuja silhueta podíamos rever os índios norte-americanos. Esta sua homenagem já me fez ir à prateleira buscar um livro no qual não mexia há que tempos, O sopro das vozes – Textos de Índios Americanos: «Havia um grande rio chamado Rio Feminino que atravessava esta terra de norte a sul e havia outro grande rio que a atravessava de leste a oeste, chamado o Rio Masculino. O rio Masculino fluía pelo Rio Feminino e continuava, e o nome deste lugar chama-se tqo alna’osdli, o Cruzamento das Águas».
Por todas as razões e mais alguma, não esqueço aquele sábado, 12 de Março, dia em que fiz ping-pong entre a moda e a manifestação. Depois de ter participado nesta, e desfilado entre os Restauradores e o Rossio, e de ver tantos cartazes e testemunhado ao vivo a mega insatisfação que corre nas veias da nossa sociedade, o que me impressionou mais foi um conjunto de bandeiras negras (fome!) e um alerta muito individual acenado pelo cartaz «não consigo viver». De regresso ao Terreiro do Paço pelas cinco da tarde, em «modo» espera encontravam-se ali vários carros da polícia de choque, com agentes a rigor: capacete, coletes anti-bala, tons azul escuro e preto. Finalmente, vi ali traduzida, in vivo, uma frase de Gertrude Stein, «War makes fashion».

1 comentário:

paula roush disse...

cris, muito obrigada pelo excelente resumo do design moda pt