Hanna Arendt (n.Alemanha, 1906 -1975) escrevia no seu livro «On Revolution» (1963): «Guerras e revoluções caracterizaram até agora a fisionomia do século XX». Mulher da filosofia e da teoria política salientava que os homens não nascem livres e iguais - a liberdade e a igualdade são opções políticas. Por ser judia, viu-se privada do direito de apresentar na Alemanha nazi a sua dissertação sobre o conceito de amor e o pensamento de Santo Agostinho, fugindo para Paris, onde também trabalhou na ajuda aos refugiados judeus. A obra teórica de Hanna Arendt centralizou-se na política, nos regimes totalitários e autoritários, os regimes que mais colocam em causa os direitos humanos.
Para além dos direitos consagrados já nos textos internacionais e legais, necessários para que homens e mulheres se realizem plena e livremente, e pelos quais teremos de continuar a zelar - para o bem comum, pois a existência de pessoas destituídas de direitos humanos enfraquece a sociedade no seu todo - nada impede que novos direitos sejam consagrados no futuro, nomeadamente aqueles que concernem os objectivos de uma democracia paritária - patentes já em recomendações da comunidade europeia aos Estados membros, sobre conciliação do trabalho e da vida familiar, e participação equilibrada de homens e mulheres na tomada de decisão política e pública.
Entre 1975 e a actualidade realizaram-se algumas grandes conferências mundiais sobre mulheres: Cidade do México, 1975; Copenhaga, 1980; Nairobi, 1985; e Pequim, 1990. Ali, os Estados participantes comprometeram-se a incluir a dimensão do género em todas as instituições, decisões políticas, acções de planeamento e tomadas de decisão. A Plataforma de Acção de Pequim identificou 12 áreas fundamentais, que representam os principais obstáculos ao progresso das mulheres e por isso carecem de medidas concretas por parte dos Governos e da sociedade, a saber: mulheres e pobreza; educação e formação das mulheres; mulheres e conflitos armados; mulheres e economia; mulheres no poder e nos processos decisórios; mecanismos institucionais para o progresso das mulheres; direitos humanos das mulheres; mulheres e meios de comunicação social; mulheres e ambiente; e raparigas.
Numa sessão especial convocada pela Assembleia Geral, entre 5 e 9 de Junho de 2000, em Nova Iorque, foram examinados os progressos alcançados com a plataforma de Pequim. Subordinada ao tema «Mulheres 2000: Igualdade de Género, Desenvolvimento e Paz para o Século XXI», a sessão desembocou numa Declaração Política e num documento final - «Novas acções e iniciativas destinadas a aplicar a Declaração e Plataforma de Acção de Pequim», onde os Governos e a comunidade internacional reafirmaram o empenho na realização dos objectivos de Pequim e no estabelecimento de uma agenda comum para o desenvolvimento, com a igualdade de género como princípio subjacente – em todas as áreas e a todos os níveis. Os participantes acordaram na adopção de 199 medidas a ser realizadas aos níveis nacional e internacional, pelos Governos, entidades do sistema das Nações Unidas, organizações internacionais e regionais, não governamentais, e outros agentes da sociedade civil. Para muitas das acções foram identificados os seguintes grupos alvos, ou destinatárias preferenciais: mulheres idosas e de meia idade; adolescentes e mulheres jovens; refugiadas e requerentes de asilo; mulheres indígenas; empresárias e trabalhadoras independentes; mulheres migrantes; mulheres rurais; mulheres com deficiência; e mulheres chefes de família.
escrita olhares perspectivas críticas ensaios artes género feminismos sociologia moda
29.12.06
4.12.06
A Carta - III
Pelos textos de Elina Guimarães perpassava toda a dedicação de uma vida a escrever sobre as mulheres, as suas causas, as suas vitórias, sempre divulgando os avanços na legislação, e os debates sobre a acção da mulher na sociedade e na cultura. Contava a sua experiência, o seu conhecimento, as suas reflexões, e essa era a matéria que alimentava os seus interessantes artigos. Recordava no Diário de Notícias em 1987 o que significava para uma mulher ser formada em Direito em 1926: «quando me formei em Direito, esse diploma não me dava a possibilidade de participar em qualquer eleição e a maioria das profissões eram-me vedadas. Quando casasse perderia parte dos direitos sobre a minha pessoa e bens e não tinha direito sobre os meus futuros filhos. O feminismo estava representado por uma única associação e os homens troçavam. No entanto, eu acreditei no futuro e lutei por ele.» (Diário de Notícias, 10.03.87, p.28)
A ideia de futuro continua a guiar mulheres e homens por todo o mundo. Um mundo melhor, sem pobreza, sem violência. Sem opressores nem oprimidos. Sem discriminação de género, ou social, ou racial, ou étnica, qualquer uma delas empobrecedora das nações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos vem fornecer no século XX senão o mais importante, um dos mais importantes documentos para a matriz civilizacional – que serviu de base a dois tratados internacionais, o dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – vertido na Constituição dos países que a ratificaram, como é o nosso caso. Não é demais citar um dos parágrafos que constitui o seu preâmbulo, bem como o Art.1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; (...).
«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados da razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
Já no Renascimento havia quem sonhasse com o projecto «utópico» de uma sociedade livre feita de indíviduos livres, numa atitude crítica perante a sua actualidade, ou, se quisermos, a agenda (histórica) - tal como a viveu o humanista e escritor Thomas More, que retratou a organização ideal da sociedade no seu romance político Utopia, publicado em 1516, cuja acção se concentrava numa ilha imaginária. «Os Utopianos detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem, que contudo espécie alguma de animais ferozes pratica tão frequentemente como o homem» escreveu na página 114. Deste género literário utópico, alimentado por uma dupla de narradores que funcionam como alter-egos de More, muito haveria a dizer. Para já, saliento um detalhe: um destes narradores, Rafael Hitlodeu, se bem que produto da ficção, nasceu em Portugal, fala de uma existência concreta, baseada nas suas viagens com homens reais e nas conversas que entretece com figuras históricas - como Américo Vespúcio (nasceu em Florença em 1451, e morreu em 1512; visitou a América depois de Cristovão Colombo, e More inspirou-se no relato das viagens de Vespúcio para escrever o seu romance). Portanto, cá está de novo o papel do navegador português na construção da Utopia: como descobridor de outras ilhas, de outras terras, de outros modos, usos e costumes, enfim, do Outro, que comporta todo um novo mundo de existência de uma sociedade ideal como a que encontramos na obra de Thomas More.
O século XVII assistiu ao Tratado de Vestfália (1648) - que culminou a Guerra dos 30 Anos e garantiu a igualdade de direitos entre as comunidades cristãs católica e protestante no território alemão. Considerado como um dos primeiros instrumentos internacionais com medidas de protecção aos direitos humanos, antecedeu deste modo a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada a 26 de Agosto de 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte francesa. Mesmo sabendo que a Revolução Francesa foi aquela que, na Europa, determinou a queda do Antigo Regime (Ancien Régime) e a entrada na Idade Contemporânea, marcada pela corrente filosófica do Iluminismo e pelos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a cidadania continuava a estar limitada aos homens. Por isso, a senhora Olympe de Gouges, dramaturga, resolveu em 1791 fazer a sua própria revolução, escrevendo e publicando a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ecoando a mesma linguagem, mas aqui dirigida finalmente às mulheres. Dota-a de um preâmbulo, seguido de 17 artigos e de um posfácio, que é como que um abanão: «Mulher, acorda, o sino da razão se faz ouvir em todo o universo, reconhece os teus direitos. (...) Ó mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais vantagens tirastes da Revolução? (...) Temeis que os nossos Legisladores Franceses, defensores dessa moral, por tanto tempo agarrada aos ramos da política, mas que agora está em desuso, possam vos repetir: “mulheres, o que há de comum entre vós e nós?”. Tudo, deveis responder.»
A ideia de futuro continua a guiar mulheres e homens por todo o mundo. Um mundo melhor, sem pobreza, sem violência. Sem opressores nem oprimidos. Sem discriminação de género, ou social, ou racial, ou étnica, qualquer uma delas empobrecedora das nações. A Declaração Universal dos Direitos Humanos vem fornecer no século XX senão o mais importante, um dos mais importantes documentos para a matriz civilizacional – que serviu de base a dois tratados internacionais, o dos Direitos Civis e Políticos e o dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais – vertido na Constituição dos países que a ratificaram, como é o nosso caso. Não é demais citar um dos parágrafos que constitui o seu preâmbulo, bem como o Art.1º da Declaração Universal dos Direitos Humanos: «Considerando que, na Carta, os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade dos direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla; (...).
«Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados da razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade».
Já no Renascimento havia quem sonhasse com o projecto «utópico» de uma sociedade livre feita de indíviduos livres, numa atitude crítica perante a sua actualidade, ou, se quisermos, a agenda (histórica) - tal como a viveu o humanista e escritor Thomas More, que retratou a organização ideal da sociedade no seu romance político Utopia, publicado em 1516, cuja acção se concentrava numa ilha imaginária. «Os Utopianos detestam e abominam a guerra como coisa brutal e selvagem, que contudo espécie alguma de animais ferozes pratica tão frequentemente como o homem» escreveu na página 114. Deste género literário utópico, alimentado por uma dupla de narradores que funcionam como alter-egos de More, muito haveria a dizer. Para já, saliento um detalhe: um destes narradores, Rafael Hitlodeu, se bem que produto da ficção, nasceu em Portugal, fala de uma existência concreta, baseada nas suas viagens com homens reais e nas conversas que entretece com figuras históricas - como Américo Vespúcio (nasceu em Florença em 1451, e morreu em 1512; visitou a América depois de Cristovão Colombo, e More inspirou-se no relato das viagens de Vespúcio para escrever o seu romance). Portanto, cá está de novo o papel do navegador português na construção da Utopia: como descobridor de outras ilhas, de outras terras, de outros modos, usos e costumes, enfim, do Outro, que comporta todo um novo mundo de existência de uma sociedade ideal como a que encontramos na obra de Thomas More.
O século XVII assistiu ao Tratado de Vestfália (1648) - que culminou a Guerra dos 30 Anos e garantiu a igualdade de direitos entre as comunidades cristãs católica e protestante no território alemão. Considerado como um dos primeiros instrumentos internacionais com medidas de protecção aos direitos humanos, antecedeu deste modo a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, votada a 26 de Agosto de 1789 pela Assembleia Nacional Constituinte francesa. Mesmo sabendo que a Revolução Francesa foi aquela que, na Europa, determinou a queda do Antigo Regime (Ancien Régime) e a entrada na Idade Contemporânea, marcada pela corrente filosófica do Iluminismo e pelos ideais da liberdade, igualdade e fraternidade, a cidadania continuava a estar limitada aos homens. Por isso, a senhora Olympe de Gouges, dramaturga, resolveu em 1791 fazer a sua própria revolução, escrevendo e publicando a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, ecoando a mesma linguagem, mas aqui dirigida finalmente às mulheres. Dota-a de um preâmbulo, seguido de 17 artigos e de um posfácio, que é como que um abanão: «Mulher, acorda, o sino da razão se faz ouvir em todo o universo, reconhece os teus direitos. (...) Ó mulheres! Mulheres, quando deixareis de ser cegas? Quais vantagens tirastes da Revolução? (...) Temeis que os nossos Legisladores Franceses, defensores dessa moral, por tanto tempo agarrada aos ramos da política, mas que agora está em desuso, possam vos repetir: “mulheres, o que há de comum entre vós e nós?”. Tudo, deveis responder.»
26.11.06
Pastelaria
«Afinal o que importa não é a literatura
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precípicio
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com
fome
porque assim como assim ainda há muita gente que
come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de
muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do
peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra».
Mário Cesariny
(f.26 Novembro 2006 )
nem a crítica de arte nem a câmara escura
Afinal o que importa não é bem o negócio
nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio
Afinal o que importa não é ser novo e galante
- ele há tanta maneira de compor uma estante
Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos
frente ao precípicio
e cair verticalmente no vício
Não é verdade rapaz? E amanhã há bola
antes de haver cinema madame blanche e parola
Que afinal o que importa não é haver gente com
fome
porque assim como assim ainda há muita gente que
come
Que afinal o que importa é não ter medo
de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de
muita gente:
Gerente! Este leite está azedo!
Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do
peludo
à saída da pastelaria, e lá fora - ah, lá fora! - rir
de tudo
No riso admirável de quem sabe e gosta
ter lavados e muitos dentes brancos à mostra».
Mário Cesariny
(f.26 Novembro 2006 )
14.11.06
A CARTA - II
Será preciso ao homem experimentar a guerra para desejar a paz? No pós-guerra, a ideia de paz inundou as nações, que unidas (o nome «nações unidas» terá sido sugerido por Franklin Roosevelt, ainda na conferência dos Aliados, celebrada no ano de 1943 em Moscovo. Celebraram a sua primeira conferência a 25 de Abril (aqui está uma data histórica, aliada à paz e à liberdade e que une várias nações europeias) de 1945. Em Portugal já cumprimos o 50º aniversário sobre a nossa entrada como membro das Nações Unidas. Foi a 14 de Dezembro de 1955, em sessão especial da Assembleia Geral e por acordo entre os EUA e a então União Soviética - resolução 995 (X) -, que o nosso país passou a fazer parte daquela organização (o que entraria em vigor a 21 de Fevereiro de 1956), aceitando doravante as obrigações constantes da Carta das Nações Unidas, da qual reza assim o preâmbulo,
«Nós os povos das Nações Unidas, decididos: preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;
a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas;
a estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;
a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade;
e para tais fins:
a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos;
a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais;
a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum;
a empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos;
Resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objectivos.
Em vista disso, os nossos respectivos governos, por intermédio dos seus representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem os seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, adoptaram a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.»
Também a 10 de Dezembro assinala-se o Dia dos Direitos Humanos - resolução 423 (V) - uma forma de marcar o aniversário da adopção pela Assembleia Geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Se os fundadores da ONU ansiavam poder evitar novas guerras, essa esperança morreu certamente em cada conflito armado a que assistiram, para renascer posteriormente, numa espécie de eterno retorno ao momento da paz.
Mas para as mulheres – rectaguarda social em todas as guerras, ou esforço ‘de vida’ aliado ao esforço de guerra implícito ao conflito armado – um novo tempo surge a seguir à primeira guerra. O papel da mulher na construção da Europa entre as duas guerras foi ganhando protagonismo. Ela quer intervir na construção europeia. Tal como em França temos o exemplo de Louise Weiss, jornalista e feminista ao serviço da paz, em Portugal temos o exemplo de Elina Guimarães (n.1904-1991), «feminista, jurista, e escritora» (definição, por esta ordem, da própria, citada in Elina Guimarães, Uma Feminista Portuguesa, Vida e Obra 1904/1991, CIDM, Lisboa, 2004, p.35.), também uma pacifista, europeísta e, membro do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, tendo escrito em muitas publicações nacionais, entre as quais menciono, quase diria, de raspão, este trecho do Portugal Feminino (1930):
«O feminismo, nunca é demais repeti-lo, há muito que já deixou de ser uma mera utopia para assumir os aspectos concretos e variados duma ideia em marcha. È por isso indispensável conhecer as suas grandes orientadoras e realizadoras, as Associações Internacionais Femininas.
Estas representam desde já no mundo uma fôrça muito maior do que vulgarmente se supõe, força altamente benéfica pelo altruísmo dos seus ideais, e cujo poder diàriamente aumenta.» (Elina Guimarães, «Associações Internacionais Feministas», «Página Feminista», Portugal Feminino, Abril de 1930, in Elina Guimarães, Uma Feminista Portuguesa, Vida e Obra 1904/1991, CIDM, Lisboa, 2004).
«Nós os povos das Nações Unidas, decididos: preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra que por duas vezes, no espaço de uma vida humana, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade;
a reafirmar a nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres, assim como das nações, grandes e pequenas;
a estabelecer as condições necessárias à manutenção da justiça e do respeito das obrigações decorrentes de tratados e de outras fontes do direito internacional;
a promover o progresso social e melhores condições de vida dentro de um conceito mais amplo de liberdade;
e para tais fins:
a praticar a tolerância e a viver em paz, uns com os outros, como bons vizinhos;
a unir as nossas forças para manter a paz e a segurança internacionais;
a garantir, pela aceitação de princípios e a instituição de métodos, que a força armada não será usada, a não ser no interesse comum;
a empregar mecanismos internacionais para promover o progresso económico e social de todos os povos;
Resolvemos conjugar os nossos esforços para a consecução desses objectivos.
Em vista disso, os nossos respectivos governos, por intermédio dos seus representantes reunidos na cidade de São Francisco, depois de exibirem os seus plenos poderes, que foram achados em boa e devida forma, adoptaram a presente Carta das Nações Unidas e estabelecem, por meio dela, uma organização internacional que será conhecida pelo nome de Nações Unidas.»
Também a 10 de Dezembro assinala-se o Dia dos Direitos Humanos - resolução 423 (V) - uma forma de marcar o aniversário da adopção pela Assembleia Geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Se os fundadores da ONU ansiavam poder evitar novas guerras, essa esperança morreu certamente em cada conflito armado a que assistiram, para renascer posteriormente, numa espécie de eterno retorno ao momento da paz.
Mas para as mulheres – rectaguarda social em todas as guerras, ou esforço ‘de vida’ aliado ao esforço de guerra implícito ao conflito armado – um novo tempo surge a seguir à primeira guerra. O papel da mulher na construção da Europa entre as duas guerras foi ganhando protagonismo. Ela quer intervir na construção europeia. Tal como em França temos o exemplo de Louise Weiss, jornalista e feminista ao serviço da paz, em Portugal temos o exemplo de Elina Guimarães (n.1904-1991), «feminista, jurista, e escritora» (definição, por esta ordem, da própria, citada in Elina Guimarães, Uma Feminista Portuguesa, Vida e Obra 1904/1991, CIDM, Lisboa, 2004, p.35.), também uma pacifista, europeísta e, membro do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, tendo escrito em muitas publicações nacionais, entre as quais menciono, quase diria, de raspão, este trecho do Portugal Feminino (1930):
«O feminismo, nunca é demais repeti-lo, há muito que já deixou de ser uma mera utopia para assumir os aspectos concretos e variados duma ideia em marcha. È por isso indispensável conhecer as suas grandes orientadoras e realizadoras, as Associações Internacionais Femininas.
Estas representam desde já no mundo uma fôrça muito maior do que vulgarmente se supõe, força altamente benéfica pelo altruísmo dos seus ideais, e cujo poder diàriamente aumenta.» (Elina Guimarães, «Associações Internacionais Feministas», «Página Feminista», Portugal Feminino, Abril de 1930, in Elina Guimarães, Uma Feminista Portuguesa, Vida e Obra 1904/1991, CIDM, Lisboa, 2004).
25.10.06
A Carta - Parte I
Grandes documentos começam numa carta. Assim foi com a Carta das Nações Unidas, assinada em São Francisco a 26 de Junho de 1945 e que, de acordo com o seu artigo 110.º, entrou em vigor no dia 24 de Outubro daquele mesmo ano.
Recuando um pouco mais no tempo, a precursora das Nações Unidas havia sido a Sociedade das Nações, com uma organização concebida em circunstâncias semelhantes durante a Primeira Guerra Mundial e estabelecida em 1919, em conformidade com o Tratado de Versailhes, «para promover a cooperação internacional e conseguir a paz e a segurança». Por ocasião da assinatura do tratado, a 28 de Junho, Louise Weiss (n. Arras,1893-1983), munida de um passe de imprensa, acorria à sessão oficial. Dirigia uma revista que tinha fundado, de política francesa e internacional, Europe Nouvelle, desde Janeiro de 1918 (e até 1934). Muito marcada pela Primeira Guerra, esta escritora, jornalista, europeísta e feminista, participa vivamente na construção europeia, ao integrar o movimento intelectual que militava por uma paz federativa. Para esta mulher, a Europa devia ter uma cultura e uma alma: europeísmo, universalismo e pacifismo são indissociáveis. A sua revista, um instrumento científico de informação sobre a vida da Europa, difundia as ideias de Aristide Briand, cujas análises partilhava e a quem apelidou de «peregrino da paz». Galardoado com o prémio Nobel da Paz - político francês, Aristide Briand (n.1862-1932) teve em primeiro lugar a pasta da Instrução Pública e da Cultura, o primeiro dos seus 26 cargos no governo - foi uma das grandes figuras pioneiras da construção europeia. Briand tinha feitos os seus estudos em Direito e foi fundador do diário socialista L’ Humanité.
Pelo seu lado, Louise Weiss criou em 1930 a Nouvelle Ecole de la Paix, um estabelecimento livre de ensino superior destinado a sustentar a acção da Sociedade das Nações. Mas a partir de 1934 a situação internacional muda e a opinião pública é cada vez mais hostil à ideia de uma Europa unida; ela deixa a direcção da sua revista, e passa a ocupar-se de um outro combate: o das mulheres. No final daquela década, criou o Comité dos refugiados, para acudir às pessoas perseguidas pelo regime nazi na Alemanha, e quando a França foi invadida, Louise entrou para a Resistência sob o nome de Valentine. Em 1971 criou uma fundação e um prémio anual para prolongar a sua acção em favor da unidade europeia e do avanço das ciências da paz. Em 1979, ela é eleita deputada ao Parlamento Europeu, onde propõe a criação de um Museu da ideia europeia.
Sobre as suas ideias, as suas viagens, os seus combates, há muito para contar. Cito apenas uma entrevista que ela deu a 18 de Julho de 1979 a Paul Collowald, onde afirmou:
«Se os europeus tomassem consciência deste fundo comum de cultura que existe desde a Idade Média, (...) creio que esta tomada de consciência facilitaria a solução das questões puramente materiais(…).» [In Louise Weiss L’Européenne, Foundation Jean Monnet, Centre de Recherches Européennes, Lausanne, 1994, p.507.]
Em suma, segundo Louise Weiss, seria ideal que cada pessoa europeia se dissesse europeia e, agora no nosso caso, ‘portuguesa’. Pois a «especificidade que forma a riqueza da nossa civilização permanece como apanágio das pátrias, e estas reconhecem-se indissociavelmente ligadas por uma maneira de pensar e de sentir, que se resume finalmente na defesa dos direitos humanos.»
Recuando um pouco mais no tempo, a precursora das Nações Unidas havia sido a Sociedade das Nações, com uma organização concebida em circunstâncias semelhantes durante a Primeira Guerra Mundial e estabelecida em 1919, em conformidade com o Tratado de Versailhes, «para promover a cooperação internacional e conseguir a paz e a segurança». Por ocasião da assinatura do tratado, a 28 de Junho, Louise Weiss (n. Arras,1893-1983), munida de um passe de imprensa, acorria à sessão oficial. Dirigia uma revista que tinha fundado, de política francesa e internacional, Europe Nouvelle, desde Janeiro de 1918 (e até 1934). Muito marcada pela Primeira Guerra, esta escritora, jornalista, europeísta e feminista, participa vivamente na construção europeia, ao integrar o movimento intelectual que militava por uma paz federativa. Para esta mulher, a Europa devia ter uma cultura e uma alma: europeísmo, universalismo e pacifismo são indissociáveis. A sua revista, um instrumento científico de informação sobre a vida da Europa, difundia as ideias de Aristide Briand, cujas análises partilhava e a quem apelidou de «peregrino da paz». Galardoado com o prémio Nobel da Paz - político francês, Aristide Briand (n.1862-1932) teve em primeiro lugar a pasta da Instrução Pública e da Cultura, o primeiro dos seus 26 cargos no governo - foi uma das grandes figuras pioneiras da construção europeia. Briand tinha feitos os seus estudos em Direito e foi fundador do diário socialista L’ Humanité.
Pelo seu lado, Louise Weiss criou em 1930 a Nouvelle Ecole de la Paix, um estabelecimento livre de ensino superior destinado a sustentar a acção da Sociedade das Nações. Mas a partir de 1934 a situação internacional muda e a opinião pública é cada vez mais hostil à ideia de uma Europa unida; ela deixa a direcção da sua revista, e passa a ocupar-se de um outro combate: o das mulheres. No final daquela década, criou o Comité dos refugiados, para acudir às pessoas perseguidas pelo regime nazi na Alemanha, e quando a França foi invadida, Louise entrou para a Resistência sob o nome de Valentine. Em 1971 criou uma fundação e um prémio anual para prolongar a sua acção em favor da unidade europeia e do avanço das ciências da paz. Em 1979, ela é eleita deputada ao Parlamento Europeu, onde propõe a criação de um Museu da ideia europeia.
Sobre as suas ideias, as suas viagens, os seus combates, há muito para contar. Cito apenas uma entrevista que ela deu a 18 de Julho de 1979 a Paul Collowald, onde afirmou:
«Se os europeus tomassem consciência deste fundo comum de cultura que existe desde a Idade Média, (...) creio que esta tomada de consciência facilitaria a solução das questões puramente materiais(…).» [In Louise Weiss L’Européenne, Foundation Jean Monnet, Centre de Recherches Européennes, Lausanne, 1994, p.507.]
Em suma, segundo Louise Weiss, seria ideal que cada pessoa europeia se dissesse europeia e, agora no nosso caso, ‘portuguesa’. Pois a «especificidade que forma a riqueza da nossa civilização permanece como apanágio das pátrias, e estas reconhecem-se indissociavelmente ligadas por uma maneira de pensar e de sentir, que se resume finalmente na defesa dos direitos humanos.»
12.9.06
O papel da mulher na mudança e enquanto elemento pacificador da sociedade - Parte V
A partir de meados do século XIX, e sobretudo após 1870, o discurso feminista passa a ser protagonizado por mulheres – insiste-se na aquisição dos direitos jurídicos o que significa que a mulher quer participar nas transformações sociais, ao lado dos homens. Essa é aliás a verdadeira luta pela igualdade, por um mundo melhor, onde as ideias por mais utópicas que sejam ambicionam uma harmonia e um equilíbrio apenas possível mediante a união dos sexos, em paz e em liberdade.
Algumas mulheres oitocentistas combinaram uma faceta de jornalista,
com a de pedagoga, e a de protagonista da mudança e de elemento pacificador numa sociedade que se pretendia mais justa. Alice Pestana (n.Santarém,1860 - f.Madrid,1929) escrevia regularmente na Vanguarda, com o pseudónimo de Cil, onde se pronunciou sobre o feminismo (mas também colaborou no Almanach das Senhoras, na Gazeta de Portugal, em O Século, e no Diário de Notícias). Como pedagoga e escritora, ela desenvolvia artigos sobre as questões educativas – a sua obra inclui vários estudos pedagógicos e sociológicos - , assim como sobre a intervenção da mulher em defesa da paz, tendo presidido à Liga Portuguesa da Paz, fundada em 18 de Maio de 1898. A partir de 1885, assinou os seus contos e artigos com o nome Eduardo Caiel ou apenas Caiel. No final do século (1899-1900) dirigiu e foi redactora da revista Branca. A questão da mulher e da problemática feminista teve direito a várias polémicas na imprensa oitocentista, nomeadamente no final do século aquela que foi desencadeada na Ave Azul por Beatriz Pinheiro de Lemos e Carlos de Lemos. Ambos defendiam a emancipação feminina, ele mais incisivo nas declarações, o que lhe terá causado contratempos junto da igreja. Quanto a ela, as suas crónicas naquele Verão de 1899 impeliam as mulheres a reivindicarem os seus direitos: «que façam por conquistar a igualdade civil e política, que sejam nos bancos das Escolas as dignas rivais dos mais inteligentes e dos mais estudiosos.»[ In ESTEVES, João, «O movimento feminista em Portugal – Periódicos (1899-1928)», Faces de Eva 1-2, Edições Colibri, 1999.]
Beatriz Pinheiro acreditava também que a independência económica da mulher - «sem precisar de um homem que a mantenha» - só podia ser atingida mediante uma educação maior. Também para ela o contributo feminino era essencial para a construção da Paz Universal.
Uma outra mulher à frente do seu tempo seria Angelina Vidal, nascida em meados do século XIX, filha do maestro Joaquim Casimiro, que começaria a colaborar nos jornais sob o pseudónimo de uma republicana vizeense. Embora fosse uma mulher da burguesia, cedo se começou a interessar pelas classes mais desfavorecidas, perseguindo assim o seu ideal de viver numa sociedade mais justa e liberal. Foi a partir das comemorações do tricentenário de Camões em 1880 e do Marquês de Pombal em 1882 que se fez notar pela sua eloquência e pelo seu entusiasmo em prol da classe operária. No ano seguinte começou a escrever no jornal dos operários do tabaco, A Voz do Operário (nascido em 11 de Outubro de 1879). Contudo, já a partir de 1864, após o fim do monopólio do tabaco, os patrões desta indústria, para manterem a sua rentabilidade começaram a contratar mão-de-obra feminina mal paga; o mesmo fenómeno aconteceu com a indústria dos têxteis. Na indústria do papel a mão-de-obra feminina era também maioritária. Sob a iniciativa de José Fontana, em 1872 nascia a secção de Lisboa da Fraternidade Operária, uma organização que punha em prática a igualdade entre os sexos e elegia uma mulher na presidência da terceira secção das tecedeiras de Lisboa da Fraternidade Operária. Alguns anos depois, em 1894, o jornal A Federação de 29 de Julho (ano I, nº30) escrevia que eram cerca de 2000 as filiadas nas associações profissionais em Lisboa, número já importante na época.
Para além de colaboradora de A Voz do Operário, Angelina Vidal foi também colaboradora de muitos outros periódicos (O Tecido, O Trabalhador, etc.) e foi proprietária e principal redactora de Sindicato, Justiça do Povo e Emancipação. Mas para além deste traço de solidariedade para com a classe operária, e do seu desejo de justiça social, como é manifestado também por outras mulheres, há na produção desta jornalista e escritora um outro traço comum, muito ao gosto da época: a poesia e as peças de teatro, escritos mais emocionais e ingénuos, saídos da pena de uma alma feminina (nome do Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, de 1914, organização federada numa instituição internacional, «The International Council of Women», depois transformado em 1917 na revista «Alma Feminina», até 1946, orgão do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas).
Segundo reza a história de Angelina Vidal, e apesar do seu testemunho combativo, o governo recusou-lhe uma pensão por viuvez em virtude da morte do seu marido em 1894, oficial da armada numa missão em África, devido à actividade política dela e às suas ideias republicanas. Se a monarquia não lhe reconheceu os méritos, mais tarde a República não a tratou melhor.
Encontramos essa mesma atitude, com a reformulação da lei que permitiu a Carolina Beatriz Ângelo votar. Tendo combatido ao lado dos homens para implantar a República, era legítimo às mulheres que esperassem dela as grandes reformas que reconhecessem as suas capacidades políticas. As mulheres serviram os ideais da República, esta é que uma vez tomado o poder não soube respeitar as companheiras de luta. Visível a partir de 1911, a luta feminista virá a ser radicalizada, o que esteve patente no apelo das republicanas, de que é exemplo este discurso de Ana de Castro Osório às operárias: «Associai-vos, porque a associação é a maior força da natureza, mas associai-vos enquanto mulheres, porque antes de serdes operárias vós ereis já
mulheres, e depois disso continuareis a sê-lo.» [Resposta de Ana de Castro Osório ao Germinal – As operárias das fábricas de Setúbal e a Greve, no jornal O radical, in COUTO-POTACHE, Dejanirah, «Les Origines du Feminisme Au Portugal», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982, p.466].
No entanto, como ela escreveu também, «a questão feminista não se confunde com a questão operária». O que, com mais exemplos da história económica e social a acrescentar a este, em que as feministas da burguesia combatem por umas razões e a classe operária feminina por outras, se vem demonstrar que a luta das mulheres precisa regressar ao essencial, o qual nem sempre é visível - o lugar das mulheres na sociedade do seu tempo. Disso depende a união das suas forças.
A partir de meados do século XIX, e sobretudo após 1870, o discurso feminista passa a ser protagonizado por mulheres – insiste-se na aquisição dos direitos jurídicos o que significa que a mulher quer participar nas transformações sociais, ao lado dos homens. Essa é aliás a verdadeira luta pela igualdade, por um mundo melhor, onde as ideias por mais utópicas que sejam ambicionam uma harmonia e um equilíbrio apenas possível mediante a união dos sexos, em paz e em liberdade.
Algumas mulheres oitocentistas combinaram uma faceta de jornalista,
com a de pedagoga, e a de protagonista da mudança e de elemento pacificador numa sociedade que se pretendia mais justa. Alice Pestana (n.Santarém,1860 - f.Madrid,1929) escrevia regularmente na Vanguarda, com o pseudónimo de Cil, onde se pronunciou sobre o feminismo (mas também colaborou no Almanach das Senhoras, na Gazeta de Portugal, em O Século, e no Diário de Notícias). Como pedagoga e escritora, ela desenvolvia artigos sobre as questões educativas – a sua obra inclui vários estudos pedagógicos e sociológicos - , assim como sobre a intervenção da mulher em defesa da paz, tendo presidido à Liga Portuguesa da Paz, fundada em 18 de Maio de 1898. A partir de 1885, assinou os seus contos e artigos com o nome Eduardo Caiel ou apenas Caiel. No final do século (1899-1900) dirigiu e foi redactora da revista Branca. A questão da mulher e da problemática feminista teve direito a várias polémicas na imprensa oitocentista, nomeadamente no final do século aquela que foi desencadeada na Ave Azul por Beatriz Pinheiro de Lemos e Carlos de Lemos. Ambos defendiam a emancipação feminina, ele mais incisivo nas declarações, o que lhe terá causado contratempos junto da igreja. Quanto a ela, as suas crónicas naquele Verão de 1899 impeliam as mulheres a reivindicarem os seus direitos: «que façam por conquistar a igualdade civil e política, que sejam nos bancos das Escolas as dignas rivais dos mais inteligentes e dos mais estudiosos.»[ In ESTEVES, João, «O movimento feminista em Portugal – Periódicos (1899-1928)», Faces de Eva 1-2, Edições Colibri, 1999.]
Beatriz Pinheiro acreditava também que a independência económica da mulher - «sem precisar de um homem que a mantenha» - só podia ser atingida mediante uma educação maior. Também para ela o contributo feminino era essencial para a construção da Paz Universal.
Uma outra mulher à frente do seu tempo seria Angelina Vidal, nascida em meados do século XIX, filha do maestro Joaquim Casimiro, que começaria a colaborar nos jornais sob o pseudónimo de uma republicana vizeense. Embora fosse uma mulher da burguesia, cedo se começou a interessar pelas classes mais desfavorecidas, perseguindo assim o seu ideal de viver numa sociedade mais justa e liberal. Foi a partir das comemorações do tricentenário de Camões em 1880 e do Marquês de Pombal em 1882 que se fez notar pela sua eloquência e pelo seu entusiasmo em prol da classe operária. No ano seguinte começou a escrever no jornal dos operários do tabaco, A Voz do Operário (nascido em 11 de Outubro de 1879). Contudo, já a partir de 1864, após o fim do monopólio do tabaco, os patrões desta indústria, para manterem a sua rentabilidade começaram a contratar mão-de-obra feminina mal paga; o mesmo fenómeno aconteceu com a indústria dos têxteis. Na indústria do papel a mão-de-obra feminina era também maioritária. Sob a iniciativa de José Fontana, em 1872 nascia a secção de Lisboa da Fraternidade Operária, uma organização que punha em prática a igualdade entre os sexos e elegia uma mulher na presidência da terceira secção das tecedeiras de Lisboa da Fraternidade Operária. Alguns anos depois, em 1894, o jornal A Federação de 29 de Julho (ano I, nº30) escrevia que eram cerca de 2000 as filiadas nas associações profissionais em Lisboa, número já importante na época.
Para além de colaboradora de A Voz do Operário, Angelina Vidal foi também colaboradora de muitos outros periódicos (O Tecido, O Trabalhador, etc.) e foi proprietária e principal redactora de Sindicato, Justiça do Povo e Emancipação. Mas para além deste traço de solidariedade para com a classe operária, e do seu desejo de justiça social, como é manifestado também por outras mulheres, há na produção desta jornalista e escritora um outro traço comum, muito ao gosto da época: a poesia e as peças de teatro, escritos mais emocionais e ingénuos, saídos da pena de uma alma feminina (nome do Boletim Oficial do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, de 1914, organização federada numa instituição internacional, «The International Council of Women», depois transformado em 1917 na revista «Alma Feminina», até 1946, orgão do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas).
Segundo reza a história de Angelina Vidal, e apesar do seu testemunho combativo, o governo recusou-lhe uma pensão por viuvez em virtude da morte do seu marido em 1894, oficial da armada numa missão em África, devido à actividade política dela e às suas ideias republicanas. Se a monarquia não lhe reconheceu os méritos, mais tarde a República não a tratou melhor.
Encontramos essa mesma atitude, com a reformulação da lei que permitiu a Carolina Beatriz Ângelo votar. Tendo combatido ao lado dos homens para implantar a República, era legítimo às mulheres que esperassem dela as grandes reformas que reconhecessem as suas capacidades políticas. As mulheres serviram os ideais da República, esta é que uma vez tomado o poder não soube respeitar as companheiras de luta. Visível a partir de 1911, a luta feminista virá a ser radicalizada, o que esteve patente no apelo das republicanas, de que é exemplo este discurso de Ana de Castro Osório às operárias: «Associai-vos, porque a associação é a maior força da natureza, mas associai-vos enquanto mulheres, porque antes de serdes operárias vós ereis já
mulheres, e depois disso continuareis a sê-lo.» [Resposta de Ana de Castro Osório ao Germinal – As operárias das fábricas de Setúbal e a Greve, no jornal O radical, in COUTO-POTACHE, Dejanirah, «Les Origines du Feminisme Au Portugal», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982, p.466].
No entanto, como ela escreveu também, «a questão feminista não se confunde com a questão operária». O que, com mais exemplos da história económica e social a acrescentar a este, em que as feministas da burguesia combatem por umas razões e a classe operária feminina por outras, se vem demonstrar que a luta das mulheres precisa regressar ao essencial, o qual nem sempre é visível - o lugar das mulheres na sociedade do seu tempo. Disso depende a união das suas forças.
9.7.06
A maior feminização do trabalho e a luta pela instrução - Parte IV
Em Portugal, como noutros países europeus, «a construção do Estado-nação e da democracia implicou, desde a sua génese, a delimitação das fronteiras entre os espaços públicos e privados, os quais sendo sexualmente conotados, excluiam as mulheres dos primeiros. Da aceitação desta partilha à sua contestação percorreu-se um longo caminho, através do qual se foi construindo a indivividualidade feminina como ser social e político, sendo as reivindicações de direitos, em especial da instrução, elementos-chave do acesso à cidadania no século XIX.» [VAQUINHAS, Irene, «Historiografia das Mulheres (século XIX), Faces de Eva, Nº3, Edições Colibri, Lisboa, 2000.]
A análise comparativa da linha de pensamento feminino com a de pensamento masculino surge-nos em títulos como A Assembléa Litteraria, Almanach das Senhoras, A Mulher, O Recreio, O Luso, O Sol, A Federação, A Gazeta de Portugal, e A Vanguarda, ou A Voz Feminina, segundo Isabel Ildefonso [autora da dissertação «As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), in JOAQUIM, Teresa, e GALHARDO, Anabela, Novos Olhares – Passado e Presente nos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, Celta, Oeiras, 2003) o primeiro jornal feminista editado em Portugal, dirigido por Francisca Wood, uma portuguesa casada com um inglês, que trocou a «comodidade do mundo privado» pela «insegurança do domínio público», defendendo com «grande valor a causa das mulheres na luta pelos seus direitos». No primeiro número, Francisca Wood lançava um primeiro apelo às portuguesas:
«Não queiramos por mais tempo ser, o que até agora temos sido, - bonecas! Aos atractivos que a natureza nos deu, juntemos a preponderância que dá o saber. Às portuguesas não falta inteligência: falta-lhes o amor do estudo sério, falta-lhes o espírito de análise filosófica, não só sobre assuntos abstractos, mas até sobre os fenómenos mais familiares que nos circundam. Façamo-nos pois verdadeiros «Anjos do lar» mostremos ao mundo varonil que lhe não somos inferiores senão em força física. Trabalhemos, e a recompensa será um triunfo glorioso.» [ Voz Feminina, nº1, in CORTEZ, Maria Teresa, «Emancipação Feminina & Contos de Grimm. Versões Portuguesas do Século XIX», O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, CIDM, Lisboa, 1994]
Ela propôs-se assim lutar pela emancipação das mulheres portuguesas através do seu jornal - editado entre 5 de Janeiro de 1868 e 27 de Junho de 1869 - , assumidamente escrito por mulheres, embora alguns dos textos fossem redigidos por homens. Contudo, «não se podia atribuir a redacção a um homem, porque se afirmara que o jornal era totalmente redigido por mulheres, o que não correspondia à verdade. Alguns homens utilizaram pseudónimos femininos (...).» [«As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), Ibidem., p.16.
Escrito por um grupo de mulheres e de homens progressistas que tinha por objectivo modificar o papel da mulher na sociedade, a Voz Feminina não esquecia o seu papel no mundo laboral «até aí interdito às mulheres, com excepção das classes mais baixas, onde o trabalho era apenas tolerado, devido às necessidades económicas. É analisada a situação das mulheres trabalhadoras em alguns países europeus, assim como as perspectivas laborais que se começam a abrir às mulheres de classe mais elevadas devido à instrucção. Começa a ser realidade o acesso às Universidades e a conquista das novas profissões, apesar do oposicionismo mais conservador.»
Logo no primeiro número da Voz Feminina o jornal sugeria a criação de uma associação de modistas, manifestando assim o seu espírito associativista, característico da época que se segue ao triunfo do constitucionalismo e que antecede um período de grande debate ideológico (o movimento republicano organizar-se-á a partir da década de 70). Esperava assim a Voz Feminina que o triunfo da sua publicação se reflectisse para além do discurso sobre a moda e os conceitos de beleza, e mesmo para além dos paradigmas femininos captados pela literatura, e para além da filantropia – mais um dos deveres femininos por excelência, já que o Estado não tinha a seu cargo qualquer tipo de segurança social. O pensamento feminista naquela época congregava pois um misto de sentimento anti-violência (a favor de mulheres vítimas de miséria, dos oprimidos e desprotegidos da nação), com apelos e movimentos de defesa das mulheres, do ambiente, dos animais, e com reinvindicação de direitos civis e políticos. A frontalidade dos seus artigos de opinião deitava por terra uma invisibilidade que seria segura para as suas vidas pessoais, mas de que abdicaram em prol de uma vida pública, não para elas em especial, mas para todas as mulheres. «A mentalidade do século, a que não podiam eximir-se, constituía outra limitação à sua liberdade: não podiam esquecer que, para além de mulheres feministas, jornalistas e lutadoras, eram também senhoras cujas opiniões punham em perigo o seu casamento, vida social e reputação». A um de Julho do mesmo ano o jornal A Voz Feminina continua a publicar-se, mas com outro nome e outras características e direcção - «O Progresso: Continuação da Voz Feminina».
A participação feminina no mundo do trabalho adquire uma outra visibilidade ao formarem-se associações, como anunciou, por exemplo, o jornal A Federação – Folha Industrial Dedicada ás Classes Operárias de 19 de Setembro de 1857: «senhoras artistas costureiras criaram uma associação no Porto achando seo este apelo», na sequência de um artigo assinado por D.M.C.F.D., ou Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne (n.Bragança,1820-1902), intitulado «O Brado de uma Mulher» de 14 de Março daquele ano, onde se lia: «arvoro a bandeira de apostolo da emancipação feminina, e ainda que tivesse de morrer sacrificada, bradaria no meio do sacrificio, que só pela instrucção é que podemos conseguir a regeneração, e que esta não se poderá emprehender senão por meio da associação. (...) O único meio, e o mais efficaz, é o da associação de mulheres de corações nobres e pensamentos elevados, que se dediquem sincera e lealmente, que se votem aos maiores sacríficios para promover a instrucção, e fazer valer o direito da mulher! (...) Eia pois! Ávante, caras compatriotas! Preparemos o caminho para as nossas vindouras, que já isso é uma glória.» [ Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne, «O Brado de uma Mulher» in A Federação, 14 Março, 1857.]
Nas páginas do jornal A Federação podiam ainda ser lidos artigos de uma outra eloquente professora e jornalista, Maria José da Silva Canuto (n.Caneças, 1812-1890), grande defensora da educação popular, professora régia, que discursava sobre a liberdade e a fraternidade dos povos, e assinava prelecções intituladas «Moral do Evangelho», e de Maria Soares de Albergaria, ou Condessa Montemerli (nascida em França, e casada com um barítono, o conde italiano Lourenço Montemerli). Vivendo em Itália, os seus escritos surgiram publicados em alguns dos jornais portugueses, como A Política Liberal de 21 de Dezembro de 1860, que publicou uma carta sua escrita em Pisa a 11 de Novembro daquele ano, dirigida ao Imperador da Aústria, Francisco José, e oferecida às italianas, onde faz a defesa da unificação italiana, chegando a afirmar «nós mulheres italianas resgataremos Veneza, seja qual fôr o preço porque elle nol’a quizer ceder». Escritora, com várias obras publicadas, foi também da sua pena que saiu uma carta endereçada ao papa Pio IX onde defende a causa da liberdade da Itália.
Como é referido no colóquio «Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle» por Maria Teresa Salgado ( «Angelina Vidal: Entre Socialisme et Féminisme», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982.), ao longo da história houve sempre mulheres célebres e de carácter, mulheres que entenderam que era preciso ir mais longe, do que aquilo que a sociedade burguesa e patriarcal queria. A elas e à sua acção transgressora se deve a mudança da condição feminina ainda no século XIX, porque contribuiram decisivamente para que algo mexesse e abriram caminho para um movimento feminista, sufragista, de transição entre os séculos XIX e XX. Mas para os intelectuais do século XIX o lugar da mulher é no lar (a eterna associação do lar ao lugar do feminino). Apesar de acharem benéfica a educação feminina, porque primeiro a mulher é mãe e dela depende a educação dos homens, eles têm medo de lhe reconhecer demasiadas liberdades. A primeira tentativa para estruturar o ensino feminino em Portugal foi feito pelo governo de Saldanha, em 3 de Agosto de 1870 (desde 1851 que o movimento da Regeneração iria marcar toda a segunda metade do século XIX; este movimento originado pelo golpe do Duque de Saldanha, depôs Costa Cabral, um antigo setembrista radical que, em 1842, havia reposto a Carta Constitucional). Era assim criado em Lisboa um instituto de educação para o sexo feminino; no entanto, as cortes não o aprovaram e anularam-no através de uma lei de 27 de Dezembro de 1870. É apenas em 1885 que a Câmara de Lisboa cria um estabelecimento de ensino para a educação do sexo feminino, a escola D.Maria Pia, e em 1888 é autorizado ao governo o estabelecimento nesta cidade, no Porto e em Coimbra de institutos para o ensino secundário feminino. Todavia esta lei só entra em vigor em 1906 e ao chegarmos a 1910 o ensino primário era o mesmo para os dois sexos, o ensino secundário dispunha em Lisboa de um único estabelecimento para toda a população feminina do país, sendo portanto o ensino privado que colmatava estas lacunas, e apenas no caso das meninas de classe social elevada. Num quadro geral, em 1911 a nossa população com 5 960 056 pessoas, apresentava 68% de homens e 81,2 % de mulheres que não sabiam ler nem escrever (a partir de Dicionário de História de Portugal, dir. de SERRÃO, Joel, «Ensino»). Neste cenário, pode compreender-se que o combate das nossas primeiras feministas pela importância social que é devida à mulher tenha sido a luta pela instrução, como uma etapa necessária para a luta pela emancipação feminina e pela igualdade de direitos. A jovem República portuguesa assistia naquele ano de 1911, pela primeira vez, à nomeação de uma mulher, Carolina Michaëlis de Vasconcellos, professora universitária, e assistia ainda, ao voto de Carolina Beatriz Ângelo – a primeira mulher a votar em Portugal e em toda a Europa do Sul, o que teve projecção além fronteiras -, maior de 21 anos de idade, médica, viúva e chefe de família, preenchendo os requisitos de um «cidadão eleitor»; dois anos mais tarde a lei repunha a ordem masculina e interditava às mulheres o direito ao voto, que lhes será então dado apenas no Estado Novo, em 1931 com certas restrições. Se os homens maiores de 21 anos, analfabetos ou alfabetizados, podiam votar, já elas tinham de ter curso superior ou secundário. Só em 1968, com o marcelismo, foi atingida a consagração da igualdade de voto.
Em Portugal, como noutros países europeus, «a construção do Estado-nação e da democracia implicou, desde a sua génese, a delimitação das fronteiras entre os espaços públicos e privados, os quais sendo sexualmente conotados, excluiam as mulheres dos primeiros. Da aceitação desta partilha à sua contestação percorreu-se um longo caminho, através do qual se foi construindo a indivividualidade feminina como ser social e político, sendo as reivindicações de direitos, em especial da instrução, elementos-chave do acesso à cidadania no século XIX.» [VAQUINHAS, Irene, «Historiografia das Mulheres (século XIX), Faces de Eva, Nº3, Edições Colibri, Lisboa, 2000.]
A análise comparativa da linha de pensamento feminino com a de pensamento masculino surge-nos em títulos como A Assembléa Litteraria, Almanach das Senhoras, A Mulher, O Recreio, O Luso, O Sol, A Federação, A Gazeta de Portugal, e A Vanguarda, ou A Voz Feminina, segundo Isabel Ildefonso [autora da dissertação «As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), in JOAQUIM, Teresa, e GALHARDO, Anabela, Novos Olhares – Passado e Presente nos Estudos sobre as Mulheres em Portugal, Celta, Oeiras, 2003) o primeiro jornal feminista editado em Portugal, dirigido por Francisca Wood, uma portuguesa casada com um inglês, que trocou a «comodidade do mundo privado» pela «insegurança do domínio público», defendendo com «grande valor a causa das mulheres na luta pelos seus direitos». No primeiro número, Francisca Wood lançava um primeiro apelo às portuguesas:
«Não queiramos por mais tempo ser, o que até agora temos sido, - bonecas! Aos atractivos que a natureza nos deu, juntemos a preponderância que dá o saber. Às portuguesas não falta inteligência: falta-lhes o amor do estudo sério, falta-lhes o espírito de análise filosófica, não só sobre assuntos abstractos, mas até sobre os fenómenos mais familiares que nos circundam. Façamo-nos pois verdadeiros «Anjos do lar» mostremos ao mundo varonil que lhe não somos inferiores senão em força física. Trabalhemos, e a recompensa será um triunfo glorioso.» [ Voz Feminina, nº1, in CORTEZ, Maria Teresa, «Emancipação Feminina & Contos de Grimm. Versões Portuguesas do Século XIX», O Rosto Feminino da Expansão Portuguesa, CIDM, Lisboa, 1994]
Ela propôs-se assim lutar pela emancipação das mulheres portuguesas através do seu jornal - editado entre 5 de Janeiro de 1868 e 27 de Junho de 1869 - , assumidamente escrito por mulheres, embora alguns dos textos fossem redigidos por homens. Contudo, «não se podia atribuir a redacção a um homem, porque se afirmara que o jornal era totalmente redigido por mulheres, o que não correspondia à verdade. Alguns homens utilizaram pseudónimos femininos (...).» [«As Mulheres na imprensa periódica do século XIX – O jornal A Voz Feminina (1868-1869), Ibidem., p.16.
Escrito por um grupo de mulheres e de homens progressistas que tinha por objectivo modificar o papel da mulher na sociedade, a Voz Feminina não esquecia o seu papel no mundo laboral «até aí interdito às mulheres, com excepção das classes mais baixas, onde o trabalho era apenas tolerado, devido às necessidades económicas. É analisada a situação das mulheres trabalhadoras em alguns países europeus, assim como as perspectivas laborais que se começam a abrir às mulheres de classe mais elevadas devido à instrucção. Começa a ser realidade o acesso às Universidades e a conquista das novas profissões, apesar do oposicionismo mais conservador.»
Logo no primeiro número da Voz Feminina o jornal sugeria a criação de uma associação de modistas, manifestando assim o seu espírito associativista, característico da época que se segue ao triunfo do constitucionalismo e que antecede um período de grande debate ideológico (o movimento republicano organizar-se-á a partir da década de 70). Esperava assim a Voz Feminina que o triunfo da sua publicação se reflectisse para além do discurso sobre a moda e os conceitos de beleza, e mesmo para além dos paradigmas femininos captados pela literatura, e para além da filantropia – mais um dos deveres femininos por excelência, já que o Estado não tinha a seu cargo qualquer tipo de segurança social. O pensamento feminista naquela época congregava pois um misto de sentimento anti-violência (a favor de mulheres vítimas de miséria, dos oprimidos e desprotegidos da nação), com apelos e movimentos de defesa das mulheres, do ambiente, dos animais, e com reinvindicação de direitos civis e políticos. A frontalidade dos seus artigos de opinião deitava por terra uma invisibilidade que seria segura para as suas vidas pessoais, mas de que abdicaram em prol de uma vida pública, não para elas em especial, mas para todas as mulheres. «A mentalidade do século, a que não podiam eximir-se, constituía outra limitação à sua liberdade: não podiam esquecer que, para além de mulheres feministas, jornalistas e lutadoras, eram também senhoras cujas opiniões punham em perigo o seu casamento, vida social e reputação». A um de Julho do mesmo ano o jornal A Voz Feminina continua a publicar-se, mas com outro nome e outras características e direcção - «O Progresso: Continuação da Voz Feminina».
A participação feminina no mundo do trabalho adquire uma outra visibilidade ao formarem-se associações, como anunciou, por exemplo, o jornal A Federação – Folha Industrial Dedicada ás Classes Operárias de 19 de Setembro de 1857: «senhoras artistas costureiras criaram uma associação no Porto achando seo este apelo», na sequência de um artigo assinado por D.M.C.F.D., ou Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne (n.Bragança,1820-1902), intitulado «O Brado de uma Mulher» de 14 de Março daquele ano, onde se lia: «arvoro a bandeira de apostolo da emancipação feminina, e ainda que tivesse de morrer sacrificada, bradaria no meio do sacrificio, que só pela instrucção é que podemos conseguir a regeneração, e que esta não se poderá emprehender senão por meio da associação. (...) O único meio, e o mais efficaz, é o da associação de mulheres de corações nobres e pensamentos elevados, que se dediquem sincera e lealmente, que se votem aos maiores sacríficios para promover a instrucção, e fazer valer o direito da mulher! (...) Eia pois! Ávante, caras compatriotas! Preparemos o caminho para as nossas vindouras, que já isso é uma glória.» [ Dona Marianna Candida da Fonseca Dinne, «O Brado de uma Mulher» in A Federação, 14 Março, 1857.]
Nas páginas do jornal A Federação podiam ainda ser lidos artigos de uma outra eloquente professora e jornalista, Maria José da Silva Canuto (n.Caneças, 1812-1890), grande defensora da educação popular, professora régia, que discursava sobre a liberdade e a fraternidade dos povos, e assinava prelecções intituladas «Moral do Evangelho», e de Maria Soares de Albergaria, ou Condessa Montemerli (nascida em França, e casada com um barítono, o conde italiano Lourenço Montemerli). Vivendo em Itália, os seus escritos surgiram publicados em alguns dos jornais portugueses, como A Política Liberal de 21 de Dezembro de 1860, que publicou uma carta sua escrita em Pisa a 11 de Novembro daquele ano, dirigida ao Imperador da Aústria, Francisco José, e oferecida às italianas, onde faz a defesa da unificação italiana, chegando a afirmar «nós mulheres italianas resgataremos Veneza, seja qual fôr o preço porque elle nol’a quizer ceder». Escritora, com várias obras publicadas, foi também da sua pena que saiu uma carta endereçada ao papa Pio IX onde defende a causa da liberdade da Itália.
Como é referido no colóquio «Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle» por Maria Teresa Salgado ( «Angelina Vidal: Entre Socialisme et Féminisme», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982.), ao longo da história houve sempre mulheres célebres e de carácter, mulheres que entenderam que era preciso ir mais longe, do que aquilo que a sociedade burguesa e patriarcal queria. A elas e à sua acção transgressora se deve a mudança da condição feminina ainda no século XIX, porque contribuiram decisivamente para que algo mexesse e abriram caminho para um movimento feminista, sufragista, de transição entre os séculos XIX e XX. Mas para os intelectuais do século XIX o lugar da mulher é no lar (a eterna associação do lar ao lugar do feminino). Apesar de acharem benéfica a educação feminina, porque primeiro a mulher é mãe e dela depende a educação dos homens, eles têm medo de lhe reconhecer demasiadas liberdades. A primeira tentativa para estruturar o ensino feminino em Portugal foi feito pelo governo de Saldanha, em 3 de Agosto de 1870 (desde 1851 que o movimento da Regeneração iria marcar toda a segunda metade do século XIX; este movimento originado pelo golpe do Duque de Saldanha, depôs Costa Cabral, um antigo setembrista radical que, em 1842, havia reposto a Carta Constitucional). Era assim criado em Lisboa um instituto de educação para o sexo feminino; no entanto, as cortes não o aprovaram e anularam-no através de uma lei de 27 de Dezembro de 1870. É apenas em 1885 que a Câmara de Lisboa cria um estabelecimento de ensino para a educação do sexo feminino, a escola D.Maria Pia, e em 1888 é autorizado ao governo o estabelecimento nesta cidade, no Porto e em Coimbra de institutos para o ensino secundário feminino. Todavia esta lei só entra em vigor em 1906 e ao chegarmos a 1910 o ensino primário era o mesmo para os dois sexos, o ensino secundário dispunha em Lisboa de um único estabelecimento para toda a população feminina do país, sendo portanto o ensino privado que colmatava estas lacunas, e apenas no caso das meninas de classe social elevada. Num quadro geral, em 1911 a nossa população com 5 960 056 pessoas, apresentava 68% de homens e 81,2 % de mulheres que não sabiam ler nem escrever (a partir de Dicionário de História de Portugal, dir. de SERRÃO, Joel, «Ensino»). Neste cenário, pode compreender-se que o combate das nossas primeiras feministas pela importância social que é devida à mulher tenha sido a luta pela instrução, como uma etapa necessária para a luta pela emancipação feminina e pela igualdade de direitos. A jovem República portuguesa assistia naquele ano de 1911, pela primeira vez, à nomeação de uma mulher, Carolina Michaëlis de Vasconcellos, professora universitária, e assistia ainda, ao voto de Carolina Beatriz Ângelo – a primeira mulher a votar em Portugal e em toda a Europa do Sul, o que teve projecção além fronteiras -, maior de 21 anos de idade, médica, viúva e chefe de família, preenchendo os requisitos de um «cidadão eleitor»; dois anos mais tarde a lei repunha a ordem masculina e interditava às mulheres o direito ao voto, que lhes será então dado apenas no Estado Novo, em 1931 com certas restrições. Se os homens maiores de 21 anos, analfabetos ou alfabetizados, podiam votar, já elas tinham de ter curso superior ou secundário. Só em 1968, com o marcelismo, foi atingida a consagração da igualdade de voto.
13.6.06
O papel precursor de Antónia Gertrudes Pusich para o movimento feminista – Parte III
É na imprensa que se pode ler parte do pensamento feminino sobre a situação da mulher e o seu papel na sociedade oitocentista. Quando em 1849 surgia a Assembléa Litteraria– Jornal D’Instrucção , o primeiro jornal dirigido e fundado por uma mulher, Antónia Gertrudes Pusich (1805-1883), tal facto criava um marco – um antes e um depois na divulgação da escrita feminina - já que a partir daí os nomes femininos passavam a constar regularmente junto aos respectivos artigos, em vários periódicos, e isto não só na imprensa feminina. Na senda de Pusich, numerosas mulheres vieram a destacar-se nos jornais literários, de moda, noticiosos ou políticos, o que representou o início de uma luta pela sua visibilidade e pelo seu reconhecimento para além do agregado familiar, onde se desenvolvia toda a sua vida enquanto esposas, mães, ou filhas. O mundo lá fora, do trabalho, da economia, da política, enfim, dos poderes formalmente constituídos, era-lhes na realidade vedado, mas através da sua presença na imprensa, lado a lado com os homens, as mulheres sairam da sombra e partilharam um espaço público antes reservado ao género masculino. Essa intervenção pública através da escrita ganha contornos definidos, sociais e políticos, e suscita o diálogo entre os pares, fazendo da mulher uma nova actriz social. Sobre isto, o ensaísta D.António da Costa escrevia «Neste grandioso teatro, que se chama a pátria portuguesa, não basta que a mulher seja espectadora, é necessário que represente o seu grandioso papel».[A Mulher em Portugal, livro publicado postumamente, em 1892]
O jornalismo escrito por mulheres é de grande relevo na segunda metade do século XIX para a construção do feminismo de primeira vaga, momento histórico em que certos nomes como o de Antónia Pusich, começam por definir um caminho pioneiro naquilo que virá a ser a consciencialização da mulher, e a luta para alterar o seu estatuto (familiar, económico, social, político, jurídico e legislativo), que irá mais tarde ajudar a sedimentar o combate das republicanas pelos direitos civis, nomeadamente pelo direito ao voto. A luta de Antónia Pusich como mulher representante do sector mais esclarecido da sociedade foi essencialmente pelo acesso à instrução, elemento central para uma tomada de consciência colectiva e uma das principais reivindicações oitocentistas. Para além de A Assembléa Litteraria, ela fundou também outros dois jornais: A Beneficiência (1852/5) e A Cruzada (1858).
Nascida na ilha de São Nicolau, Cabo Verde, ela era filha de um oficial da armada de Ragusa, um general que pertencia ao império Austro-Húngaro, homem culto, que tinha vindo para Portugal a convite do embaixador português em Turim. António Pusich esteve ao serviço de D.Maria I, casou em Queluz e Antónia foi a penúltima dos seus seis filhos. Sendo nomeado para governador em Cabo Verde, é aí que a sua filha vem a nascer. Depois, já em Lisboa, ela viveu no número 265 da Rua de S.Bento (frente à Assembleia da República), na freguesia de Sta.Isabel. Antes de dirigir a Assembléa Litteraria, havia colaborado com a Revista Universal nas décadas de 30 e 40. Mas ela não só tem a coragem de fundar um jornal, como através deste veicula esta ideia de que a única maneira de a mulher ter igualdade de direitos é através de uma liberdade intelectual. O jornal é sempre um veículo da necessidade de instrução e de melhoria da condição feminina. A sua abertura de espírito era muito grande, sobretudo no contexto histórico de 1849. Frequentadora da galeria das senhoras na câmara dos deputados, ela queria participar na vida política – esta fazia parte do seu conceito de civismo e de cidadania - e saber quais os assuntos prementes que o país discutia. Intelectualmente, Antónia Pusich é de facto uma precursora do movimento feminista.
O jornalismo escrito por mulheres é de grande relevo na segunda metade do século XIX para a construção do feminismo de primeira vaga, momento histórico em que certos nomes como o de Antónia Pusich, começam por definir um caminho pioneiro naquilo que virá a ser a consciencialização da mulher, e a luta para alterar o seu estatuto (familiar, económico, social, político, jurídico e legislativo), que irá mais tarde ajudar a sedimentar o combate das republicanas pelos direitos civis, nomeadamente pelo direito ao voto. A luta de Antónia Pusich como mulher representante do sector mais esclarecido da sociedade foi essencialmente pelo acesso à instrução, elemento central para uma tomada de consciência colectiva e uma das principais reivindicações oitocentistas. Para além de A Assembléa Litteraria, ela fundou também outros dois jornais: A Beneficiência (1852/5) e A Cruzada (1858).
Nascida na ilha de São Nicolau, Cabo Verde, ela era filha de um oficial da armada de Ragusa, um general que pertencia ao império Austro-Húngaro, homem culto, que tinha vindo para Portugal a convite do embaixador português em Turim. António Pusich esteve ao serviço de D.Maria I, casou em Queluz e Antónia foi a penúltima dos seus seis filhos. Sendo nomeado para governador em Cabo Verde, é aí que a sua filha vem a nascer. Depois, já em Lisboa, ela viveu no número 265 da Rua de S.Bento (frente à Assembleia da República), na freguesia de Sta.Isabel. Antes de dirigir a Assembléa Litteraria, havia colaborado com a Revista Universal nas décadas de 30 e 40. Mas ela não só tem a coragem de fundar um jornal, como através deste veicula esta ideia de que a única maneira de a mulher ter igualdade de direitos é através de uma liberdade intelectual. O jornal é sempre um veículo da necessidade de instrução e de melhoria da condição feminina. A sua abertura de espírito era muito grande, sobretudo no contexto histórico de 1849. Frequentadora da galeria das senhoras na câmara dos deputados, ela queria participar na vida política – esta fazia parte do seu conceito de civismo e de cidadania - e saber quais os assuntos prementes que o país discutia. Intelectualmente, Antónia Pusich é de facto uma precursora do movimento feminista.
1.6.06
O tempo das mulheres - Parte II
«Eu não sei se alguma das minhas leitoras se lembrará ainda de ter visto uns enfeites de fitas, e de fitas e flôres que se usaram no princípio do século passado, mas se não os viram entre os despojos do guarda-roupa elegante de uma avósinha querida, viram-nos com certeza nos retratos d’essa epocha. Pois esse enfeites voltam a usar-se, tendo apenas de novo a qualidade dos aprestos. Os francezes chamam-lhes coiffures du soir; não sabemos se já téem denominação em portuguez. (...)
Terminamos esta chronica dizendo ás nossas gentis leitoras que actualmente o cunho essencial da verdadeira elegancia é a apparencia de uma grande simplicidade, simplicidade que chegue mesmo a similhar negligencia.
A tesoura d’outros tempos está completamente fora de uso.»
[In «Elegancia e Bom Gosto – Jornal de modas, bordados e outros trabalhos artísticos», Suplemento ao O Petardo, 15 de Abril de 1908]
Este breve trecho do suplemento «Elegancia e Bom Gosto» já da primeira década do século XX revela o carácter cíclico da moda, e a importância de reconhecer no passado a explicação para o presente - uma vez aqui, a construção de uma memória no que ao vestuário toca, é algo tão importante como a construção da escrita feminina nos jornais do século XIX. Não são apenas os papéis sociais e os hábitos relatados pela e na aparência – onde, no caso feminino, a liberdade de movimentos depende em primeira instância do que se veste - é todo um processo civilizacional que esta deixa entrever. A importância da moda como um território social onde a mulher era relativamente livre, vai crescendo ao mesmo tempo que se desenvolve a escrita para mulheres, que podemos pesquisar em jornais de época, nomeadamente naqueles que dizem ainda respeito à primeira metade do século XIX, como «O Toucador – Periódico sem Política dedicado às Senhoras Portuguesas», periódico destinado ao público feminino e que foi inteiramente escrito nos seus sete números de Fevereiro e Março de 1822 por Almeida Garrett, seu fundador e único redactor, à data com 23 anos. A um de Fevereiro daquele ano «O Toucador» dissertava assim sobre moda e civilização, numa coluna do periódico intitulada «Modas»:
«Só nossos primeiros pais andaram perfeitamente nús. E nem isso foi sempre; porque de certo tempo por diante cobriram-se com folhas de árvores. (...). Começou porém a civilização; e com ela o desejo de tornar agradável, e cómodo, o que até ali não
fora necessário. (...) Principiaram a usar-se géneros mais acomodados, e susceptíveis de belas, e engraçadas formas.
Houve pessoas, que se distinguiram na invenção delas; e eis aqui a origem das modistas. Houve nações, cujo gosto particular se avantajou neste ponto: os outros povos os imitaram; e tal foi a origem das modas estrangeiras.»[O Toucador/red.Almeida Garrett, Lisboa (1) Fev. 1822, p.4-6, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág.37.]
No ano seguinte, em 1823, apareceria o «Periódico das Damas» que publicou seis números até 1824, dirigido por outros autores. Mas cada um destes periódicos representava duas imagens de mulher da alta sociedade, uma mais festiva e outra mais monótona, destinando-se originalmente a dois tipos de público femininos diferentes. «O Toucador» é considerado o primeiro periódico destinado ao público feminino em Portugal no século XIX, logo seguido pelo «Periódico das Damas»: «O pequeno formato e a escassez de números vindos a lume é a única semelhança entre as duas publicações. Em tudo o resto diferem: na personalidade dos respectivos autores, nos objectivos que visam, no tipo de mulheres a que se destinam e, subjacente a tudo isto, na imagem da sociedade que veiculam. (...) Cada um deles representa duas imagens de mulher da alta sociedade e do seu papel social, que naquele momento coexistem e se chocam certamente, mas que, uma e outra, vão persistir por muito tempo. Tanto tempo que as ainda as encontramos hoje. E já lá vão mais de cem anos!» [in Leal, Maria Ivone, Um Século de Peródicos Femininos: arrolamento de peródicos entre 1807 e 1926, Cadernos da Condição Feminina, nº35, Comissão para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres, CIDM, Lisboa, 1992, pág.27.]
Um outro periódico, «O Correio das Damas – Jornal de Literatura e de Modas», começou a publicar-se em 1836, sendo aquele que mais longevidade teve ao longo do século passado (publicou-se até 3 de Dezembro de 1852). Uma colaboradora, que não assinava apelido, tão-só o seu nome próprio, Elvira de*, escrevia no jornal, a 12 de Janeiro de 1836 sobre uma moda em particular referindo o efeito que o seu autor conseguiu obter com a sua criação, descobrindo-se aqui uma nítida e esclarecida visão sobre aquilo que é a moda de autor:
«essa engenhosa e delicada invenção de xailes (vénetiens). Imagine-se um xaile branco, quadrado, e muito grande, de lã da Índia, de uma elasticidade admirável, bordado e cercado de uma renda da mesma lã, tendo aquela dois palmos de altura, e um centro semelhante aos desenhos góticos e julgue-se do efeito que um traje tal enfeite produzirá sobre uma elegante toilette de visita ou de passeio!!
O autor deste delicado enfeite, a julgar-se pelo efeito que vai produzindo, parece ter tido somente em vista o fazer realçar mais, se é possível, o belo sexo.»
[Correio das Damas, Lisboa, 12 Jan. 1836, p.2, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág. 47. ]
Este, e outros periódicos destinados ao público feminino alfabetizado, revelam-se muito interessantes para o estudo da moda e dos costumes sociais da burguesia lisboeta do século XIX. Mas sabe-se que não eram apenas lidos em Lisboa, pois podiam-se fazer assinaturas de «O Correio das Damas», por exemplo, em Braga, Moncorvo, no Porto, na Régua e em Setúbal.
E neste regresso ao passado da moda através dos periódicos femininos lê-se no «Jornal das Senhoras» o seguinte excerto, tão actual apesar dos seus cem anos, o que faz também pensar numa certa visão de futuro a partir do início de um novo século:
«A Moda actualmente tem um carácter electivo; deixou de ser a exclusivista doutros tempos, em que uma fazenda, uma forma de vestido, uma cor, atravessavam incólume uma estação inteira, de modo a ser condenado e banido como de lesa bom gosto tudo, que não pudesse incluir-se no chavão.
A Moda então tinha uniforme, decretava tiranicamente preferências e exclusões, amava doidamente o status quo e o que ousasse faltar a estes preceitos era tido como ridículo ou subversivo.
Hoje nas manifestações caprichosas da inconstante deusa, para qualquer objecto receber a sua sanção baste que realize a suprema condição ficar bem.»
[Cecília de Maugérar, «Modas», Jornal das Senhoras, Lisboa (2) 20 Out. 1904, p.3-4, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, pág. 99.]
A jornalista de moda de então refere ainda que a «moda renova incessantemente os ciclos, apresentando de espaço a espaço os mesmos tons característicos, os mesmos factos e leis predominantes», colocando-se assim de novo o enfâse no carácter cíclico da moda. Foi aliás esta relação entre o ritmo temporal e o modo de vestir que deu origem ao território da moda, cujo carácter efémero venceu sempre a persistência do traje no tempo.
Elina Guimarães (1904-1991) em Mulheres Portuguesas ontem e hoje faz um regresso ao passado para classificar e descrever o feminismo nascente oitocentista, que apelida de «feminismo tácito»: «As ideias liberais introduzidas no século XIX vieram, como não podia deixar de ser, influir na condição feminina, embora este objectivo não fosse primordial.
Logo em 1822, nas Cortes Constituintes, o deputado pelo Brasil, Dr.Borges Barros, propôs que se desse direito de voto às mães de seis filhos. Porque "ninguém dá mais a um país do que quem lhe dá seus cidadãos". A ideia nem sequer foi discutida, mas... fora lançada.»
[Guimarães, Elina, Mulheres Portuguesas ontem e hoje, Cadernos da Condição Feminina nº24, Lisboa, 1989.]
Na primeira metade do século XIX, a maior parte das redactoras e colaboradoras destes periódicos escondiam a sua identidade por detrás de pseudónimos, de nomes de familiares ou simplesmente de várias iniciais. Se elas eram uma minoria dentro do grupo de mulheres que trabalhava no século XIX, também o público a quem se destinava estes periódicos constituía uma minoria de nobres e de burguesas. Como refere Ivone Leal «a maioria da população feminina era formada pelas rurais, pelas mulheres e filhas de artífices habitando nas cidades e vilas e ainda pelo incipiente grupo de operárias (no relatório apresentado às Cortes em 1882 declara-se que nas 1031 fábricas existentes trabalhavam 14 934 pessoas, das quais 4 222 eram mulheres)». Apenas mediante a consulta de outras fontes se poderá definir um quadro mais global da condição feminina no século XIX português - mas em Portugal, como em Inglaterra ou França, «há na primeira metade do século XIX um discurso feminista levado a cabo por homens (...)».
[Couto-Potache, Dejanirah, «Les Origines du Feminisme Au Portugal», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982, p.450.]
É através do estudo dos periódicos femininos que se vão «descobrindo, sobretudo, atitudes que manifestam profundas alterações de mentalidade. É assim que se pode ir assistindo gradualmente ao modo como as portuguesas cultas vão deixando de se envergonhar de o ser, melhor dizendo, deixam de esconder essa sua condição.» E a melhor forma para, em meados do século XIX, veicular o discurso da emancipação das mulheres de modo a colocá-lo na «agenda» da sociedade, seria tornar central a temática da educação e da instrução das mulheres. É nesta ordem de ideias que surge em 1849 o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher em Portugal: «A Assembla Litteraria - Jornal D'Instrucção» de Antónia Gertrudes Pusich.
Terminamos esta chronica dizendo ás nossas gentis leitoras que actualmente o cunho essencial da verdadeira elegancia é a apparencia de uma grande simplicidade, simplicidade que chegue mesmo a similhar negligencia.
A tesoura d’outros tempos está completamente fora de uso.»
[In «Elegancia e Bom Gosto – Jornal de modas, bordados e outros trabalhos artísticos», Suplemento ao O Petardo, 15 de Abril de 1908]
Este breve trecho do suplemento «Elegancia e Bom Gosto» já da primeira década do século XX revela o carácter cíclico da moda, e a importância de reconhecer no passado a explicação para o presente - uma vez aqui, a construção de uma memória no que ao vestuário toca, é algo tão importante como a construção da escrita feminina nos jornais do século XIX. Não são apenas os papéis sociais e os hábitos relatados pela e na aparência – onde, no caso feminino, a liberdade de movimentos depende em primeira instância do que se veste - é todo um processo civilizacional que esta deixa entrever. A importância da moda como um território social onde a mulher era relativamente livre, vai crescendo ao mesmo tempo que se desenvolve a escrita para mulheres, que podemos pesquisar em jornais de época, nomeadamente naqueles que dizem ainda respeito à primeira metade do século XIX, como «O Toucador – Periódico sem Política dedicado às Senhoras Portuguesas», periódico destinado ao público feminino e que foi inteiramente escrito nos seus sete números de Fevereiro e Março de 1822 por Almeida Garrett, seu fundador e único redactor, à data com 23 anos. A um de Fevereiro daquele ano «O Toucador» dissertava assim sobre moda e civilização, numa coluna do periódico intitulada «Modas»:
«Só nossos primeiros pais andaram perfeitamente nús. E nem isso foi sempre; porque de certo tempo por diante cobriram-se com folhas de árvores. (...). Começou porém a civilização; e com ela o desejo de tornar agradável, e cómodo, o que até ali não
fora necessário. (...) Principiaram a usar-se géneros mais acomodados, e susceptíveis de belas, e engraçadas formas.
Houve pessoas, que se distinguiram na invenção delas; e eis aqui a origem das modistas. Houve nações, cujo gosto particular se avantajou neste ponto: os outros povos os imitaram; e tal foi a origem das modas estrangeiras.»[O Toucador/red.Almeida Garrett, Lisboa (1) Fev. 1822, p.4-6, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág.37.]
No ano seguinte, em 1823, apareceria o «Periódico das Damas» que publicou seis números até 1824, dirigido por outros autores. Mas cada um destes periódicos representava duas imagens de mulher da alta sociedade, uma mais festiva e outra mais monótona, destinando-se originalmente a dois tipos de público femininos diferentes. «O Toucador» é considerado o primeiro periódico destinado ao público feminino em Portugal no século XIX, logo seguido pelo «Periódico das Damas»: «O pequeno formato e a escassez de números vindos a lume é a única semelhança entre as duas publicações. Em tudo o resto diferem: na personalidade dos respectivos autores, nos objectivos que visam, no tipo de mulheres a que se destinam e, subjacente a tudo isto, na imagem da sociedade que veiculam. (...) Cada um deles representa duas imagens de mulher da alta sociedade e do seu papel social, que naquele momento coexistem e se chocam certamente, mas que, uma e outra, vão persistir por muito tempo. Tanto tempo que as ainda as encontramos hoje. E já lá vão mais de cem anos!» [in Leal, Maria Ivone, Um Século de Peródicos Femininos: arrolamento de peródicos entre 1807 e 1926, Cadernos da Condição Feminina, nº35, Comissão para a Igualdade e Para os Direitos das Mulheres, CIDM, Lisboa, 1992, pág.27.]
Um outro periódico, «O Correio das Damas – Jornal de Literatura e de Modas», começou a publicar-se em 1836, sendo aquele que mais longevidade teve ao longo do século passado (publicou-se até 3 de Dezembro de 1852). Uma colaboradora, que não assinava apelido, tão-só o seu nome próprio, Elvira de*, escrevia no jornal, a 12 de Janeiro de 1836 sobre uma moda em particular referindo o efeito que o seu autor conseguiu obter com a sua criação, descobrindo-se aqui uma nítida e esclarecida visão sobre aquilo que é a moda de autor:
«essa engenhosa e delicada invenção de xailes (vénetiens). Imagine-se um xaile branco, quadrado, e muito grande, de lã da Índia, de uma elasticidade admirável, bordado e cercado de uma renda da mesma lã, tendo aquela dois palmos de altura, e um centro semelhante aos desenhos góticos e julgue-se do efeito que um traje tal enfeite produzirá sobre uma elegante toilette de visita ou de passeio!!
O autor deste delicado enfeite, a julgar-se pelo efeito que vai produzindo, parece ter tido somente em vista o fazer realçar mais, se é possível, o belo sexo.»
[Correio das Damas, Lisboa, 12 Jan. 1836, p.2, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, Biblioteca Nacional, Lisboa, 1991, pág. 47. ]
Este, e outros periódicos destinados ao público feminino alfabetizado, revelam-se muito interessantes para o estudo da moda e dos costumes sociais da burguesia lisboeta do século XIX. Mas sabe-se que não eram apenas lidos em Lisboa, pois podiam-se fazer assinaturas de «O Correio das Damas», por exemplo, em Braga, Moncorvo, no Porto, na Régua e em Setúbal.
E neste regresso ao passado da moda através dos periódicos femininos lê-se no «Jornal das Senhoras» o seguinte excerto, tão actual apesar dos seus cem anos, o que faz também pensar numa certa visão de futuro a partir do início de um novo século:
«A Moda actualmente tem um carácter electivo; deixou de ser a exclusivista doutros tempos, em que uma fazenda, uma forma de vestido, uma cor, atravessavam incólume uma estação inteira, de modo a ser condenado e banido como de lesa bom gosto tudo, que não pudesse incluir-se no chavão.
A Moda então tinha uniforme, decretava tiranicamente preferências e exclusões, amava doidamente o status quo e o que ousasse faltar a estes preceitos era tido como ridículo ou subversivo.
Hoje nas manifestações caprichosas da inconstante deusa, para qualquer objecto receber a sua sanção baste que realize a suprema condição ficar bem.»
[Cecília de Maugérar, «Modas», Jornal das Senhoras, Lisboa (2) 20 Out. 1904, p.3-4, in A Moda através da Imprensa: 1807-1991, pág. 99.]
A jornalista de moda de então refere ainda que a «moda renova incessantemente os ciclos, apresentando de espaço a espaço os mesmos tons característicos, os mesmos factos e leis predominantes», colocando-se assim de novo o enfâse no carácter cíclico da moda. Foi aliás esta relação entre o ritmo temporal e o modo de vestir que deu origem ao território da moda, cujo carácter efémero venceu sempre a persistência do traje no tempo.
Elina Guimarães (1904-1991) em Mulheres Portuguesas ontem e hoje faz um regresso ao passado para classificar e descrever o feminismo nascente oitocentista, que apelida de «feminismo tácito»: «As ideias liberais introduzidas no século XIX vieram, como não podia deixar de ser, influir na condição feminina, embora este objectivo não fosse primordial.
Logo em 1822, nas Cortes Constituintes, o deputado pelo Brasil, Dr.Borges Barros, propôs que se desse direito de voto às mães de seis filhos. Porque "ninguém dá mais a um país do que quem lhe dá seus cidadãos". A ideia nem sequer foi discutida, mas... fora lançada.»
[Guimarães, Elina, Mulheres Portuguesas ontem e hoje, Cadernos da Condição Feminina nº24, Lisboa, 1989.]
Na primeira metade do século XIX, a maior parte das redactoras e colaboradoras destes periódicos escondiam a sua identidade por detrás de pseudónimos, de nomes de familiares ou simplesmente de várias iniciais. Se elas eram uma minoria dentro do grupo de mulheres que trabalhava no século XIX, também o público a quem se destinava estes periódicos constituía uma minoria de nobres e de burguesas. Como refere Ivone Leal «a maioria da população feminina era formada pelas rurais, pelas mulheres e filhas de artífices habitando nas cidades e vilas e ainda pelo incipiente grupo de operárias (no relatório apresentado às Cortes em 1882 declara-se que nas 1031 fábricas existentes trabalhavam 14 934 pessoas, das quais 4 222 eram mulheres)». Apenas mediante a consulta de outras fontes se poderá definir um quadro mais global da condição feminina no século XIX português - mas em Portugal, como em Inglaterra ou França, «há na primeira metade do século XIX um discurso feminista levado a cabo por homens (...)».
[Couto-Potache, Dejanirah, «Les Origines du Feminisme Au Portugal», Utopie et Socialisme au Portugal au XIXe Siecle, Actes Du Colloque, Paris, 10-13 Janvier 1979, FCG, CCP, Paris, 1982, p.450.]
É através do estudo dos periódicos femininos que se vão «descobrindo, sobretudo, atitudes que manifestam profundas alterações de mentalidade. É assim que se pode ir assistindo gradualmente ao modo como as portuguesas cultas vão deixando de se envergonhar de o ser, melhor dizendo, deixam de esconder essa sua condição.» E a melhor forma para, em meados do século XIX, veicular o discurso da emancipação das mulheres de modo a colocá-lo na «agenda» da sociedade, seria tornar central a temática da educação e da instrução das mulheres. É nesta ordem de ideias que surge em 1849 o primeiro jornal fundado e dirigido por uma mulher em Portugal: «A Assembla Litteraria - Jornal D'Instrucção» de Antónia Gertrudes Pusich.
16.5.06
O jornalismo feminino no século XIX português - Parte I
Como um projecto de investigação, este tema foi pensado a partir do papel pioneiro da escrita feminina na imprensa portuguesa do século XIX, situando-o em determinados periódicos de época, como foi o caso de A Assembléa Litteraria, um jornal fundado e dirigido por Antónia Gertrudes Pusich, numa ainda larga panóplia de títulos de periódicos femininos levados à estampa no século XIX.
O gosto pelo papel da mulher pioneira, pela construção de uma escrita no feminino e pela história do trabalho das mulheres guiam este trabalho que, à reflexão, junta o prazer de descobrir novos nomes, novas prosas femininas, patentes em títulos já conhecidos de alguns investigadores e de algumas investigadoras, e entre as quais se destaca Maria Ivone Leal, com o seu trabalho Um Século de Periódicos Femininos, uma grande fonte, que denota um trabalho de grande qualidade e utilidade para a história das mulheres, para a história da moda e ainda para uma sociologia da memória.
Este projecto desdobra-se em algumas pistas de investigação que se configuram transversais nos estudos sobre a mulher: a construção das diferenças de género, o papel da mulher na mudança, a alma feminina, a mulher enquanto elemento pacificador da sociedade no século XIX e ainda a maior feminização do trabalho a partir daquele século.
O gosto pelo papel da mulher pioneira, pela construção de uma escrita no feminino e pela história do trabalho das mulheres guiam este trabalho que, à reflexão, junta o prazer de descobrir novos nomes, novas prosas femininas, patentes em títulos já conhecidos de alguns investigadores e de algumas investigadoras, e entre as quais se destaca Maria Ivone Leal, com o seu trabalho Um Século de Periódicos Femininos, uma grande fonte, que denota um trabalho de grande qualidade e utilidade para a história das mulheres, para a história da moda e ainda para uma sociologia da memória.
Este projecto desdobra-se em algumas pistas de investigação que se configuram transversais nos estudos sobre a mulher: a construção das diferenças de género, o papel da mulher na mudança, a alma feminina, a mulher enquanto elemento pacificador da sociedade no século XIX e ainda a maior feminização do trabalho a partir daquele século.
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