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28.2.07
23.2.07
Dentro de ti, ó cidade
Hoje por todo o lado ouviu-se a notícia: há vinte anos morria Zeca Afonso (1929-1987). Mas a sua solidariedade, a sua música e a qualidade poética das suas canções tornaram-se eternas. A Cidade das Mulheres presta-lhe aqui homenagem, no dia em que foi também apresentado em Lisboa o Plano Nacional de Acção do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos. «O que nós andámos para aqui chegar» parafraseou Jorge Lacão (Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros) no encerramento da sessão. A Cidade das Mulheres espera poder ver (neste ano como nos vindouros) «em cada rosto igualdade».
22.2.07
Almerinda
A propósito da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, e após a publicação do trabalho «A Carta», A Cidade das Mulheres dá agora a conhecer uma entrevista a Almerinda Bento (n.Abrantes, 1951), professora do ensino secundário, membro da Coordenação Portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres, da direcção da Umar (União de Mulheres Alternativa e Resposta) e recentemente mandatária do Movimento Cidadania e Responsabilidade pelo SIM.
A mulher é um ser solidário?
Eu acho que sim. Não é fácil responder a essa pergunta, porque a sociedade patriarcal em que vivemos também nos quer inculcar que as mulheres são as piores inimigas das mulheres. E esta ideia está de tal forma disseminada, que muitas vezes até temos dificuldade em responder a essa questão. O que é um facto é que temos todos os dias exemplos de solidariedade entre as mulheres, que nos dão sobretudo uma perspectiva de futuro muito positiva.
Para ser solidária, é preciso ser-se livre?
Isso é uma pergunta também muito dificil, porque o que é ser-se livre? A nossa liberdade é sempre muito limitada, e muitas vezes há mulheres que se consideram livres e que efectivamente não o são, e vice-versa. Mas de facto o ser-se livre e o ser-se consciente da sua liberdade e da sua capacidade para mudar as coisas é digamos que meio caminho andado para exercer valores tão importantes como o da solidariedade.
É a diferença que une as mulheres? São as diferenças culturais entre as mulheres que podem enriquecer a união? [tal como Louise Weiss entendia a Europa enquanto sociedade das nações, uma sociedade que adviria das diferenças culturais, iria proporcionar a união entre as nações].
Uma das questões muito interessantes na Marcha Mundial das Mulheres é, por um lado, ter essa matriz de diversidade e, ao mesmo tempo, ter a matriz da individualidade. Essa diversidade faz com que a Marcha seja uma rede plural, sem um padrão fixo ou um pensamento único, mas, por outro lado, aspira e tem em conta a individualidade. Portanto, a Marcha é constituída por organizações, e por grupos, mas é constituída por mulheres individuais, com a sua diversidade. Se por um lado esta é a matriz de funcionamento da Marcha, é também segundo esse modelo que ela pautua os seus objectivos e a sua acção. Antigamente falava-se na mulher - não é a mulher, são as mulheres. Tal como aquela ideia do Homem, com maiúscula - o ser universal, assexuado, ou apenas masculinizado. Nós hoje em dia não falamos da mulher, do direito da mulher, falamos das mulheres, porque é exactamente de mulheres muito diferentes, com culturas muito diferentes, com aspirações diferentes, mas também com traços comuns, que o planeta é feito.
A Marcha Mundial das Mulheres nasceu em 2000 - foi uma acção local que esteve na sua origem?
A MMM surgiu depois da Conferência de Pequim em 1995. A Federação das Mulheres do Québec promoveu uma marcha no Canadá, exactamente para denunciar problemas de pobreza que ali havia. Portanto, a ideia inicial de se fazer uma marcha que foi engrossando durou uma série de dias, e no final tinha umas centenas de pessoas. Essa ideia inicial fez germinar a ideia de fazer em 2000 uma acção a nível planetário, que agarrasse as mulheres de todo o mundo, e para isso era necessário definir pontos comuns que fossem pontos de união entre as mulheres. E esses pontos são exactamente a matriz da Marcha, que são os problemas da violência sobre as mulheres e a pobreza. Isto para te dizer o seguinte: de facto, a ideia surgiu depois da conferência de Pequim, em 1995, e depois a ideia foi crescendo, mas digamos que a reunião fundadora do movimento aconteceu em 1998, em Toronto. Em Outubro fez-se a primeira reunião internacional, onde foi definido um conjunto de reivindicações em torno da pobreza e da violência, e em que se traçaram ideias para as acções de 2000. Portanto, este movimento mundial começou em 1998.
A grande luta da Marcha, a luta contra a pobreza, não é uma luta de mulheres e homens, lado a lado?
A MMM é uma rede feminista. É uma rede de mulheres que tem como objectivo sensibilizar as mulheres a nível da base, trabalhar com mulheres a nível da base, porque acredita que as mulheres têm as potencialidades para mudar o mundo. Naturalmente, intervindo junto da sociedade, com outras pessoas, mas partindo do ponto de vista organizativo das mulheres. Por isso é que dizemos: é uma rede feminista que tem como objectivo colocar e denunciar os problemas da violência e da pobreza no sentido da sua erradicação. Sabendo que a origem desses problemas baseia-se no facto de vivermos numa sociedade patriarcal, em que há de facto um desíquilibrio do ponto de vista da correlação de forças, que faz com que haja uma opressão, que é milenar, de um género sobre o outro, dos homens sobre as mulheres; e também identifica o patriarcado e o próprio capitalismo como fonte de exploração e desiquílibrio do ponto de vista da distribuição da riqueza, que leva a que sejam as mulheres a arcar com os maiores problemas. Por isso é que se fala da feminização da pobreza, porque é de facto sobre as mulheres que recaiem mais os problemas de gerir este desíquilibrio da vida e o problema da pobreza.
Quando um homem está desempregado, para além do problema do desemprego do homem, é a mulher que vai ter que gerir a falta do dinheiro que há em casa. Tem a ver com a questão da gestão dos poucos recursos que a família tem. E há o problema das famílias mono-parentais.
Mas estou a referir-me sobretudo a pessoas sózinhas. Na rua, por exemplo, vêem-se mais homens sem abrigo, do que mulheres.
Isso no fundo é também um problema de algum pudor que as mulheres têm, de expôr a sua pobreza. Há muitas mulheres que vivem de forma solitária essa pobreza, e dentro das paredes, de uma forma escondida. Há a questão das famílias mono-parentais, que geralmente são as mulheres que ficam a tomar conta das crianças, dos filhos. Tens muitas idosas que vivem sózinhas e por exemplo, ao nível do desemprego ou do emprego precário, Portugal é, na comunidade europeia, dos países com mais elevado emprego feminino, mas depois quando vamos ver, trata-se de um emprego feminino extremamente precário. É um emprego sem direitos, e muito mal pago. Há uma percentagem maior de mulheres empregadas em Portugal, do que nos países da Europa, mas depois, se formos ver o que elas ganham, verificamos que aquilo que recebem é muito baixo.
«Se as mulheres param, o mundo pára» foi uma frase da Marcha em Outubro de 2000. É possível conseguir esta chamada de atenção? Se as mulheres efectivamente parassem por um dia, o que aconteceria?
Acho que era o caos, porque a sociedade está muito mal organizada. E isto porque atribui determinados papéis às mulheres e demite os homens de fazerem estes papéis. A Carta denuncia isso: é preciso que os papéis sejam equilibrados; porque é que há-de ser dado à mulher o cuidar da casa, o cuidar das crianças, o cuidar dos deficientes? Porque é que estes papéis não deverão ser assumidos em parceria, entre os homens e as mulheres? Porque é que determinadas profissões continuam com um pendor tão masculino, quando a mulher sabe desempenhá-las? E o mesmo para os homens. Há determinadas tarefas que a sociedade considera que ficam mal a um homem fazê-las, e porque é que há-de ficar mal? Em Portugal há muitos homens que até são capazes em casa de fazer as refeições e não têm problemas de ir às compras, porque são as tarefas em que se sentem mais competentes, mas depois têm uma vergonha enorme de estender roupa à janela. Porquê? Há uns anos, um homem quase que dizia à boca cheia que não sabia agarrar numa criança e depois a prática mostra que isso é completamente falso, que ele agarra tão bem numa criança e cuida tão bem dela como uma mulher. Portanto, enquanto esta sociedade estiver organizada desta forma, se a mulher deixar de cumprir essas tarefas que erradamente lhe estão a ser atribuídas quase em exclusividade, o mundo entra num caos, porque também os homens ficam privados do usufruto de uma série de coisas. Um homem que nunca tenha tido o prazer dar o biberão a um bébé, ou dar-lhe banho, acho que isso é uma falha enorme no percurso de crescimento dos homens. A própria história e a evolução humana obriga a que haja avanços e progressos e a que as coisas também se alterem, mas acho que nesse aspecto teve muita importância o próprio movimento e a luta das mulheres ao longo dos séculos, mas com maior visibilidade neste último – com a questão do direito ao voto, do direito à educação, dos direitos sexuais e reprodutivos que foram sendo alcançados. Houve de facto por parte das várias organizações de mulheres um trabalho quotidiano, difícil, que por vezes até levou mulheres à morte, como naquele processo da luta pelo voto, aquelas manifestações em que mulheres morreram. Temos de chamar à tona da água a importância que as lutas de mulheres têm tido no sentido de fazer evoluir a história e de fazer evoluir o pensamento da humanidade, das mulheres e dos homens.
Houve portuguesas implicadas na escrita da Carta?
A Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade nasceu de um pequeno grupo de redacção. Do ponto de vista da organização há vários grupos de trabalhos. A Marcha está organizada a nível internacional com diferentes comités ou grupos de trabalho que trabalham áreas específicas: há um comité da paz, há um das lésbicas, há um que tem a ver com as economias alternativas, outro com a violência, etc. Há ainda um de comunicações. Este é constituído por mulheres de vários países -inclusivé convidaram-nos a nós, Portugal, a mim e à Luísa Corvo, da Ilga. Esse comité de comunicações tem, por um lado, como objectivo e como tarefa fazer uma Newsletter - que é trimestral, e dá informações para toda a Marcha - e actualizar a página Web. E redigiu um primeiro esboço de carta, feito com mulheres dos vários países, baseada nos cinco valores: liberdade, igualdade, solidariedade, justiça, paz. Depois, esse texto inicial foi enviado para todos os países onde havia uma coordenação nacional, no sentido de as coordenações nacionais lerem, darem a sua opinião e as suas sugestões. Portanto, houve esse primeiro esboço que foi enviado de novo ao comité de redacção. A seguir, houve um segundo esboço, e depois deste ter sido também analisado pelas coordenações nacionais voltou ao comité internacional e finalmente houve um texto final que foi aprovado no Ruanda, em Dezembro de 2004, na V Reunião Internacional da Marcha. Aí então é que foi aprovada a Carta Mundial. A partir de um texto inicial, esse texto foi depois escrito pelas mulheres de todo o mundo. Isto pode parecer excessivo, mas não o é, na medida em que como todas as coordenações puderam dar os seus contributos, e depois os feed-backs ajudavam a melhorar, a ampliar, a transformar, o esboço inicial – e houve dois. A terceira versão é que foi a final. Portanto, digamos que esta carta foi de facto um processo muito longo, que durou dois anos. Foi um processo difícil, porque era preciso encontrar um texto comum, que pudesse de alguma forma unir as mulheres de todo o planeta e tinha de ser um texto que não ferisse sensibilidades, que fosse abrangente, e ao mesmo tempo suficientemente propositivo e reinvindicativo, para que não se recuasse relativamente ao que se tinha conseguido em 2000. Então, havia um caderno de 17 reivindicações e ainda uma adenda feita pelas lésbicas relativamente aos seus direitos. Houve um postal com duas frases – que foi subscrito por milhões de mulheres e entregue na ONU em 2000.
Queríamos no fundo avançar com um texto, autónomo, mas que fosse um texto dirigido à humanidade: por isso é que se diz Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. Mas não foi fácil, era preciso encontrar um texto por um lado abrangente, por outro consensual.
Mas as duas grandes tónicas eram a luta contra a pobreza e a eliminação da violência contra as mulheres?
Sim, e continua a ser. Essa é a base de que parte a Marcha Mundial das Mulheres. Aliás, em 2003, quando foi o IV Encontro Internacional da Marcha, em Nova Deli, também lá esteve a Helena Pinto (Umar), que foi a única portuguesa ali presente. Esse encontro em Nova Deli começou a 19 de Março, que foi o dia em que começou a guerra no Iraque, e nesse encontro, as mulheres presentes definiram que era necessário acrescentar um outro tema à Marcha, para além da violênca e da pobreza, que era o da paz: a luta pela paz, numa altura em que o mundo estava a iniciar um processo muito dificil, que foi a guerra no Iraque, e que infelizmente continua de forma dramática.
Entre o apelo e a reivindicação há um lado mais forte na Carta? Esta tem também afirmações que podem ser utópicas, ao mesmo tempo que fala de direitos e da necessidade de os salvaguardar.
Nós dizemos que esta carta é a nossa utopia feminista. Nós não sabíamos muito bem qual o tempo verbal a utilizar. Porque tem a ver com a questão do futuro. Nós reconhecemos que aquilo, é aquilo a que nós aspiramos. É a nossa utopia feminista. Reconhecemos que é muito dificil, todas as utopias o são, mas se calhar só as mulheres é que são capazes de utopia e têm a coragem de dizer «nós queremos um mundo onde exista a paz, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, e a justiça, que no fundo são os cinco valores desta carta. E aquilo que dizemos é que queremos este mundo, queremos lutar por ele, por isso fazemos um apelo: nós sózinhas não somos capazes de o atingir, portanto o apelo é dirigido às mulheres, aos homens, às organizações, aos movimentos sociais, no fundo, às pessoas que acreditam que é possível outro mundo, e portanto o apelo é para essas outras pessoas, que não são só mulheres, são os tais movimentos, os homens, é a sociedade.
A Carta é um instrumento global de não violência? Como podemos localmente difundi-la - como instrumento feminista ou humanitário?
A Carta é um instrumento ambicioso que, partindo da análise da organização das relações entre os seres humanos, identifica o patriarcado e o capitalismo como causas da opressão, da exclusão, da discriminação em que as mulheres têm sido as principais vítimas. Por outro lado, refere o papel que têm tido as mulheres, as suas organizações, no passado e sobretudo no século XX, no sentido da alteração das leis e dos avanços históricos e científicos que têm vindo a diminuir o fosso entre mulheres e homens, no que se refere aos direitos de cidadania. Os governos têm assinado documentos internacionais em Conferências e Cimeiras ao mais alto nível, onde se têm comprometido a proceder a mudanças nos seus países, de modo a conferir igualdade e direitos de cidadania às suas concidadãs. Muitas promessas têm sido feitas e muitas não têm passado do papel. Por isso esta Carta surge como um manifesto sensibilizador e mobilizador das energias de quantos e quantas lutam por um mundo melhor. Ela é feminista, porque põe a tónica numa alteração radical nas relações entre mulheres e homens, que retire ao homem o papel que tem tido ao longo dos séculos e confira à mulher, em igualdade, o poder e a capacidade para gerir a vida e o mundo sem discriminações. Ora a violência é o expoente máximo de uma relação de poder em que o homem se coloca em posição de supremacia face à mulher. È exemplo disso a violência de género, a violência em tempo de guerra, em que a violação é utilizada como arma de guerra.
A difusão local da Carta é feita nos contactos com organizações de mulheres; fizemo-la no período em que a Estafeta da Carta e da Manta passaram por Portugal, na Biblioteca Museu República e Resistência [2005], junto aos diferentes grupos parlamentares, nas Universidades de Coimbra e no Porto, em Trancoso na MANIFESTA (feira do desenvolvimento local) e continuámos a fazê-la quando contactámos várias associações e lhes propusemos que fizessem um quadrado para a Manta Nacional que expusemos nas acções em Lisboa [de 16 e 17 de Outubro de 2005].
As 31 afirmações que compõem a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade foram lidas na apresentação da Manta da Solidariedade Mundial. O objectivo é que ela se torne uma nova declaração universal dos direitos humanos dentro dos Estados?
Foi um momento simbólico muito importante a apresentação e leitura da Carta em Portugal, nesse dia 16 de Maio na Biblioteca Museu República e Resistência. Nesse acto intervieram mulheres que têm sido as principais protagonistas das lutas pelos direitos das mulheres nos últimos trinta anos, feministas, jovens ou menos jovens que têm encontrado no feminismo um espaço para o seu activismo e militância, através das suas investigações no âmbito dos estudos de género. Além disso, outros nomes de escritoras, pintoras, jornalistas, sociólogas, professoras, se associaram a esta Carta subscrevendo-a na internet.
Com efeito, esta Carta é um documento distinto, na senda da declaração universal dos direitos humanos e de outros documentos posteriores que consignam a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Foi feito por mulheres e dirige-se à humanidade, sendo um olhar inovador, claramente com uma perspectiva de género que aponta para uma outra forma de encarar o mundo e o papel das mulheres no mundo.
Como é que cada mulher pode sentir a Carta e pode situá-la independentemente da sua condição social? É possível falar dela da mesma forma aqui em Portugal, no Ruanda ou em França? Há que interiorizar cada uma das afirmações como desejo, ou como realidade?
Claro que a Carta será lida diferentemente consoante as realidades a que se dirija. Daí também em cada país onde ela passou juntamente com a Manta, cada coordenação ter levantado diferentes aspectos que mais afligem as mulheres desses países. Em Portugal pusemos uma forte tónica no direito à legalização do aborto, porque para nós é intolerável que as mulheres vão a tribunal por terem abortado. No Ruanda, na Região dos Grandes Lagos e em muitos países de África a grande preocupação é a guerra e aí a grande reivindicação foi a Paz. A Carta tem cinco valores que são indissociáveis, mas ela é suficientemente ampla para que em cada país se dê realce mais a um valor do que a outro, ou a apenas algumas das 31 afirmações que contém. É exactamente por isso, que este é um importante instrumento mobilizador das mulheres em qualquer parte do mundo, porque [a carta] é diversa e plural.
«É urgente mudar o mundo!» – por onde devemos começar? Pela nossa casa? Pela nossa rua? Por nós?
As mudanças interrelacionam-se. Se nos lembrarmos do que foi o 25 de Abril, a mudança histórica fez irromper as energias e as vontades que estavam amordaçadas em cada um(a) de nós. Sabemos que as mudanças para serem duradouras têm de estar em cada um(a) de nós, pois cada um(a) de nós será depois o(a) obreiro(a) das mudanças que têm a sua expressão formal nas leis. E há as mudanças de mentalidades que são as mais difíceis de conseguir porque têm a ver com aspectos culturais que enformam as pessoas, as sociedades… Mas há que começar por algum lado. A par de uma grave crise mundial – social, económica, cultural, política, institucional – hoje há a esperança de toda uma massa crítica que se opõe a este modelo neoliberal em que vivemos. Os movimentos sociais estão activos, discutem, organizam-se e a Marcha Mundial das Mulheres está neles inserida e também aí luta para que a presença e a participação das mulheres se faça sentir em paridade.
Esta rede mundial de acções feministas tem um programa definido junto dos países onde as coordenações nacionais actuam. Há uma acção no sentido dos Estados subscreverem as 31 afirmações?
A nossa perspectiva não é a de os Estados subscreverem a Carta. O movimento da Marcha é um movimento de base, de educação popular, não um movimento de cúpulas, nem governamental.
Até hoje foi positivo o envolvimento que tivemos por parte de muitas mulheres que apoiaram o movimento da Marcha e que encontram aqui um campo de acção feminista com que se identificam. Por outro lado, chegámos aos grupos parlamentares e tivemos da sua parte abertura para as reivindicações que identificámos no nosso manifesto. A coordenação portuguesa ganhou a participação de várias jovens mulheres o que é uma esperança para esta rede mundial feminista.
O plano de acção da coordenação portuguesa para os próximos tempos terá, por um lado, as orientações da Marcha a nível europeu e mundial, mas será balizado pelo manifesto que apresentámos à Assembleia da República em Maio de 2005. A coordenação portuguesa da Marcha tem acompanhado as reuniões de preparação do Fórum Social Português [Almada, Outubro 2006]. Por outro lado, pensa estar presente em manifestações, em debates, e onde quer que faça sentido fazer ouvir a voz das mulheres.
[Por iniciativa da Coordenação Portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres irá realizar-se em Coimbra, no próximo dia 14 de Abril, o Encontro Nacional de Mulheres.]
Cristina L. Duarte
A mulher é um ser solidário?
Eu acho que sim. Não é fácil responder a essa pergunta, porque a sociedade patriarcal em que vivemos também nos quer inculcar que as mulheres são as piores inimigas das mulheres. E esta ideia está de tal forma disseminada, que muitas vezes até temos dificuldade em responder a essa questão. O que é um facto é que temos todos os dias exemplos de solidariedade entre as mulheres, que nos dão sobretudo uma perspectiva de futuro muito positiva.
Para ser solidária, é preciso ser-se livre?
Isso é uma pergunta também muito dificil, porque o que é ser-se livre? A nossa liberdade é sempre muito limitada, e muitas vezes há mulheres que se consideram livres e que efectivamente não o são, e vice-versa. Mas de facto o ser-se livre e o ser-se consciente da sua liberdade e da sua capacidade para mudar as coisas é digamos que meio caminho andado para exercer valores tão importantes como o da solidariedade.
É a diferença que une as mulheres? São as diferenças culturais entre as mulheres que podem enriquecer a união? [tal como Louise Weiss entendia a Europa enquanto sociedade das nações, uma sociedade que adviria das diferenças culturais, iria proporcionar a união entre as nações].
Uma das questões muito interessantes na Marcha Mundial das Mulheres é, por um lado, ter essa matriz de diversidade e, ao mesmo tempo, ter a matriz da individualidade. Essa diversidade faz com que a Marcha seja uma rede plural, sem um padrão fixo ou um pensamento único, mas, por outro lado, aspira e tem em conta a individualidade. Portanto, a Marcha é constituída por organizações, e por grupos, mas é constituída por mulheres individuais, com a sua diversidade. Se por um lado esta é a matriz de funcionamento da Marcha, é também segundo esse modelo que ela pautua os seus objectivos e a sua acção. Antigamente falava-se na mulher - não é a mulher, são as mulheres. Tal como aquela ideia do Homem, com maiúscula - o ser universal, assexuado, ou apenas masculinizado. Nós hoje em dia não falamos da mulher, do direito da mulher, falamos das mulheres, porque é exactamente de mulheres muito diferentes, com culturas muito diferentes, com aspirações diferentes, mas também com traços comuns, que o planeta é feito.
A Marcha Mundial das Mulheres nasceu em 2000 - foi uma acção local que esteve na sua origem?
A MMM surgiu depois da Conferência de Pequim em 1995. A Federação das Mulheres do Québec promoveu uma marcha no Canadá, exactamente para denunciar problemas de pobreza que ali havia. Portanto, a ideia inicial de se fazer uma marcha que foi engrossando durou uma série de dias, e no final tinha umas centenas de pessoas. Essa ideia inicial fez germinar a ideia de fazer em 2000 uma acção a nível planetário, que agarrasse as mulheres de todo o mundo, e para isso era necessário definir pontos comuns que fossem pontos de união entre as mulheres. E esses pontos são exactamente a matriz da Marcha, que são os problemas da violência sobre as mulheres e a pobreza. Isto para te dizer o seguinte: de facto, a ideia surgiu depois da conferência de Pequim, em 1995, e depois a ideia foi crescendo, mas digamos que a reunião fundadora do movimento aconteceu em 1998, em Toronto. Em Outubro fez-se a primeira reunião internacional, onde foi definido um conjunto de reivindicações em torno da pobreza e da violência, e em que se traçaram ideias para as acções de 2000. Portanto, este movimento mundial começou em 1998.
A grande luta da Marcha, a luta contra a pobreza, não é uma luta de mulheres e homens, lado a lado?
A MMM é uma rede feminista. É uma rede de mulheres que tem como objectivo sensibilizar as mulheres a nível da base, trabalhar com mulheres a nível da base, porque acredita que as mulheres têm as potencialidades para mudar o mundo. Naturalmente, intervindo junto da sociedade, com outras pessoas, mas partindo do ponto de vista organizativo das mulheres. Por isso é que dizemos: é uma rede feminista que tem como objectivo colocar e denunciar os problemas da violência e da pobreza no sentido da sua erradicação. Sabendo que a origem desses problemas baseia-se no facto de vivermos numa sociedade patriarcal, em que há de facto um desíquilibrio do ponto de vista da correlação de forças, que faz com que haja uma opressão, que é milenar, de um género sobre o outro, dos homens sobre as mulheres; e também identifica o patriarcado e o próprio capitalismo como fonte de exploração e desiquílibrio do ponto de vista da distribuição da riqueza, que leva a que sejam as mulheres a arcar com os maiores problemas. Por isso é que se fala da feminização da pobreza, porque é de facto sobre as mulheres que recaiem mais os problemas de gerir este desíquilibrio da vida e o problema da pobreza.
Quando um homem está desempregado, para além do problema do desemprego do homem, é a mulher que vai ter que gerir a falta do dinheiro que há em casa. Tem a ver com a questão da gestão dos poucos recursos que a família tem. E há o problema das famílias mono-parentais.
Mas estou a referir-me sobretudo a pessoas sózinhas. Na rua, por exemplo, vêem-se mais homens sem abrigo, do que mulheres.
Isso no fundo é também um problema de algum pudor que as mulheres têm, de expôr a sua pobreza. Há muitas mulheres que vivem de forma solitária essa pobreza, e dentro das paredes, de uma forma escondida. Há a questão das famílias mono-parentais, que geralmente são as mulheres que ficam a tomar conta das crianças, dos filhos. Tens muitas idosas que vivem sózinhas e por exemplo, ao nível do desemprego ou do emprego precário, Portugal é, na comunidade europeia, dos países com mais elevado emprego feminino, mas depois quando vamos ver, trata-se de um emprego feminino extremamente precário. É um emprego sem direitos, e muito mal pago. Há uma percentagem maior de mulheres empregadas em Portugal, do que nos países da Europa, mas depois, se formos ver o que elas ganham, verificamos que aquilo que recebem é muito baixo.
«Se as mulheres param, o mundo pára» foi uma frase da Marcha em Outubro de 2000. É possível conseguir esta chamada de atenção? Se as mulheres efectivamente parassem por um dia, o que aconteceria?
Acho que era o caos, porque a sociedade está muito mal organizada. E isto porque atribui determinados papéis às mulheres e demite os homens de fazerem estes papéis. A Carta denuncia isso: é preciso que os papéis sejam equilibrados; porque é que há-de ser dado à mulher o cuidar da casa, o cuidar das crianças, o cuidar dos deficientes? Porque é que estes papéis não deverão ser assumidos em parceria, entre os homens e as mulheres? Porque é que determinadas profissões continuam com um pendor tão masculino, quando a mulher sabe desempenhá-las? E o mesmo para os homens. Há determinadas tarefas que a sociedade considera que ficam mal a um homem fazê-las, e porque é que há-de ficar mal? Em Portugal há muitos homens que até são capazes em casa de fazer as refeições e não têm problemas de ir às compras, porque são as tarefas em que se sentem mais competentes, mas depois têm uma vergonha enorme de estender roupa à janela. Porquê? Há uns anos, um homem quase que dizia à boca cheia que não sabia agarrar numa criança e depois a prática mostra que isso é completamente falso, que ele agarra tão bem numa criança e cuida tão bem dela como uma mulher. Portanto, enquanto esta sociedade estiver organizada desta forma, se a mulher deixar de cumprir essas tarefas que erradamente lhe estão a ser atribuídas quase em exclusividade, o mundo entra num caos, porque também os homens ficam privados do usufruto de uma série de coisas. Um homem que nunca tenha tido o prazer dar o biberão a um bébé, ou dar-lhe banho, acho que isso é uma falha enorme no percurso de crescimento dos homens. A própria história e a evolução humana obriga a que haja avanços e progressos e a que as coisas também se alterem, mas acho que nesse aspecto teve muita importância o próprio movimento e a luta das mulheres ao longo dos séculos, mas com maior visibilidade neste último – com a questão do direito ao voto, do direito à educação, dos direitos sexuais e reprodutivos que foram sendo alcançados. Houve de facto por parte das várias organizações de mulheres um trabalho quotidiano, difícil, que por vezes até levou mulheres à morte, como naquele processo da luta pelo voto, aquelas manifestações em que mulheres morreram. Temos de chamar à tona da água a importância que as lutas de mulheres têm tido no sentido de fazer evoluir a história e de fazer evoluir o pensamento da humanidade, das mulheres e dos homens.
Houve portuguesas implicadas na escrita da Carta?
A Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade nasceu de um pequeno grupo de redacção. Do ponto de vista da organização há vários grupos de trabalhos. A Marcha está organizada a nível internacional com diferentes comités ou grupos de trabalho que trabalham áreas específicas: há um comité da paz, há um das lésbicas, há um que tem a ver com as economias alternativas, outro com a violência, etc. Há ainda um de comunicações. Este é constituído por mulheres de vários países -inclusivé convidaram-nos a nós, Portugal, a mim e à Luísa Corvo, da Ilga. Esse comité de comunicações tem, por um lado, como objectivo e como tarefa fazer uma Newsletter - que é trimestral, e dá informações para toda a Marcha - e actualizar a página Web. E redigiu um primeiro esboço de carta, feito com mulheres dos vários países, baseada nos cinco valores: liberdade, igualdade, solidariedade, justiça, paz. Depois, esse texto inicial foi enviado para todos os países onde havia uma coordenação nacional, no sentido de as coordenações nacionais lerem, darem a sua opinião e as suas sugestões. Portanto, houve esse primeiro esboço que foi enviado de novo ao comité de redacção. A seguir, houve um segundo esboço, e depois deste ter sido também analisado pelas coordenações nacionais voltou ao comité internacional e finalmente houve um texto final que foi aprovado no Ruanda, em Dezembro de 2004, na V Reunião Internacional da Marcha. Aí então é que foi aprovada a Carta Mundial. A partir de um texto inicial, esse texto foi depois escrito pelas mulheres de todo o mundo. Isto pode parecer excessivo, mas não o é, na medida em que como todas as coordenações puderam dar os seus contributos, e depois os feed-backs ajudavam a melhorar, a ampliar, a transformar, o esboço inicial – e houve dois. A terceira versão é que foi a final. Portanto, digamos que esta carta foi de facto um processo muito longo, que durou dois anos. Foi um processo difícil, porque era preciso encontrar um texto comum, que pudesse de alguma forma unir as mulheres de todo o planeta e tinha de ser um texto que não ferisse sensibilidades, que fosse abrangente, e ao mesmo tempo suficientemente propositivo e reinvindicativo, para que não se recuasse relativamente ao que se tinha conseguido em 2000. Então, havia um caderno de 17 reivindicações e ainda uma adenda feita pelas lésbicas relativamente aos seus direitos. Houve um postal com duas frases – que foi subscrito por milhões de mulheres e entregue na ONU em 2000.
Queríamos no fundo avançar com um texto, autónomo, mas que fosse um texto dirigido à humanidade: por isso é que se diz Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade. Mas não foi fácil, era preciso encontrar um texto por um lado abrangente, por outro consensual.
Mas as duas grandes tónicas eram a luta contra a pobreza e a eliminação da violência contra as mulheres?
Sim, e continua a ser. Essa é a base de que parte a Marcha Mundial das Mulheres. Aliás, em 2003, quando foi o IV Encontro Internacional da Marcha, em Nova Deli, também lá esteve a Helena Pinto (Umar), que foi a única portuguesa ali presente. Esse encontro em Nova Deli começou a 19 de Março, que foi o dia em que começou a guerra no Iraque, e nesse encontro, as mulheres presentes definiram que era necessário acrescentar um outro tema à Marcha, para além da violênca e da pobreza, que era o da paz: a luta pela paz, numa altura em que o mundo estava a iniciar um processo muito dificil, que foi a guerra no Iraque, e que infelizmente continua de forma dramática.
Entre o apelo e a reivindicação há um lado mais forte na Carta? Esta tem também afirmações que podem ser utópicas, ao mesmo tempo que fala de direitos e da necessidade de os salvaguardar.
Nós dizemos que esta carta é a nossa utopia feminista. Nós não sabíamos muito bem qual o tempo verbal a utilizar. Porque tem a ver com a questão do futuro. Nós reconhecemos que aquilo, é aquilo a que nós aspiramos. É a nossa utopia feminista. Reconhecemos que é muito dificil, todas as utopias o são, mas se calhar só as mulheres é que são capazes de utopia e têm a coragem de dizer «nós queremos um mundo onde exista a paz, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, e a justiça, que no fundo são os cinco valores desta carta. E aquilo que dizemos é que queremos este mundo, queremos lutar por ele, por isso fazemos um apelo: nós sózinhas não somos capazes de o atingir, portanto o apelo é dirigido às mulheres, aos homens, às organizações, aos movimentos sociais, no fundo, às pessoas que acreditam que é possível outro mundo, e portanto o apelo é para essas outras pessoas, que não são só mulheres, são os tais movimentos, os homens, é a sociedade.
A Carta é um instrumento global de não violência? Como podemos localmente difundi-la - como instrumento feminista ou humanitário?
A Carta é um instrumento ambicioso que, partindo da análise da organização das relações entre os seres humanos, identifica o patriarcado e o capitalismo como causas da opressão, da exclusão, da discriminação em que as mulheres têm sido as principais vítimas. Por outro lado, refere o papel que têm tido as mulheres, as suas organizações, no passado e sobretudo no século XX, no sentido da alteração das leis e dos avanços históricos e científicos que têm vindo a diminuir o fosso entre mulheres e homens, no que se refere aos direitos de cidadania. Os governos têm assinado documentos internacionais em Conferências e Cimeiras ao mais alto nível, onde se têm comprometido a proceder a mudanças nos seus países, de modo a conferir igualdade e direitos de cidadania às suas concidadãs. Muitas promessas têm sido feitas e muitas não têm passado do papel. Por isso esta Carta surge como um manifesto sensibilizador e mobilizador das energias de quantos e quantas lutam por um mundo melhor. Ela é feminista, porque põe a tónica numa alteração radical nas relações entre mulheres e homens, que retire ao homem o papel que tem tido ao longo dos séculos e confira à mulher, em igualdade, o poder e a capacidade para gerir a vida e o mundo sem discriminações. Ora a violência é o expoente máximo de uma relação de poder em que o homem se coloca em posição de supremacia face à mulher. È exemplo disso a violência de género, a violência em tempo de guerra, em que a violação é utilizada como arma de guerra.
A difusão local da Carta é feita nos contactos com organizações de mulheres; fizemo-la no período em que a Estafeta da Carta e da Manta passaram por Portugal, na Biblioteca Museu República e Resistência [2005], junto aos diferentes grupos parlamentares, nas Universidades de Coimbra e no Porto, em Trancoso na MANIFESTA (feira do desenvolvimento local) e continuámos a fazê-la quando contactámos várias associações e lhes propusemos que fizessem um quadrado para a Manta Nacional que expusemos nas acções em Lisboa [de 16 e 17 de Outubro de 2005].
As 31 afirmações que compõem a Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade foram lidas na apresentação da Manta da Solidariedade Mundial. O objectivo é que ela se torne uma nova declaração universal dos direitos humanos dentro dos Estados?
Foi um momento simbólico muito importante a apresentação e leitura da Carta em Portugal, nesse dia 16 de Maio na Biblioteca Museu República e Resistência. Nesse acto intervieram mulheres que têm sido as principais protagonistas das lutas pelos direitos das mulheres nos últimos trinta anos, feministas, jovens ou menos jovens que têm encontrado no feminismo um espaço para o seu activismo e militância, através das suas investigações no âmbito dos estudos de género. Além disso, outros nomes de escritoras, pintoras, jornalistas, sociólogas, professoras, se associaram a esta Carta subscrevendo-a na internet.
Com efeito, esta Carta é um documento distinto, na senda da declaração universal dos direitos humanos e de outros documentos posteriores que consignam a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres. Foi feito por mulheres e dirige-se à humanidade, sendo um olhar inovador, claramente com uma perspectiva de género que aponta para uma outra forma de encarar o mundo e o papel das mulheres no mundo.
Como é que cada mulher pode sentir a Carta e pode situá-la independentemente da sua condição social? É possível falar dela da mesma forma aqui em Portugal, no Ruanda ou em França? Há que interiorizar cada uma das afirmações como desejo, ou como realidade?
Claro que a Carta será lida diferentemente consoante as realidades a que se dirija. Daí também em cada país onde ela passou juntamente com a Manta, cada coordenação ter levantado diferentes aspectos que mais afligem as mulheres desses países. Em Portugal pusemos uma forte tónica no direito à legalização do aborto, porque para nós é intolerável que as mulheres vão a tribunal por terem abortado. No Ruanda, na Região dos Grandes Lagos e em muitos países de África a grande preocupação é a guerra e aí a grande reivindicação foi a Paz. A Carta tem cinco valores que são indissociáveis, mas ela é suficientemente ampla para que em cada país se dê realce mais a um valor do que a outro, ou a apenas algumas das 31 afirmações que contém. É exactamente por isso, que este é um importante instrumento mobilizador das mulheres em qualquer parte do mundo, porque [a carta] é diversa e plural.
«É urgente mudar o mundo!» – por onde devemos começar? Pela nossa casa? Pela nossa rua? Por nós?
As mudanças interrelacionam-se. Se nos lembrarmos do que foi o 25 de Abril, a mudança histórica fez irromper as energias e as vontades que estavam amordaçadas em cada um(a) de nós. Sabemos que as mudanças para serem duradouras têm de estar em cada um(a) de nós, pois cada um(a) de nós será depois o(a) obreiro(a) das mudanças que têm a sua expressão formal nas leis. E há as mudanças de mentalidades que são as mais difíceis de conseguir porque têm a ver com aspectos culturais que enformam as pessoas, as sociedades… Mas há que começar por algum lado. A par de uma grave crise mundial – social, económica, cultural, política, institucional – hoje há a esperança de toda uma massa crítica que se opõe a este modelo neoliberal em que vivemos. Os movimentos sociais estão activos, discutem, organizam-se e a Marcha Mundial das Mulheres está neles inserida e também aí luta para que a presença e a participação das mulheres se faça sentir em paridade.
Esta rede mundial de acções feministas tem um programa definido junto dos países onde as coordenações nacionais actuam. Há uma acção no sentido dos Estados subscreverem as 31 afirmações?
A nossa perspectiva não é a de os Estados subscreverem a Carta. O movimento da Marcha é um movimento de base, de educação popular, não um movimento de cúpulas, nem governamental.
Até hoje foi positivo o envolvimento que tivemos por parte de muitas mulheres que apoiaram o movimento da Marcha e que encontram aqui um campo de acção feminista com que se identificam. Por outro lado, chegámos aos grupos parlamentares e tivemos da sua parte abertura para as reivindicações que identificámos no nosso manifesto. A coordenação portuguesa ganhou a participação de várias jovens mulheres o que é uma esperança para esta rede mundial feminista.
O plano de acção da coordenação portuguesa para os próximos tempos terá, por um lado, as orientações da Marcha a nível europeu e mundial, mas será balizado pelo manifesto que apresentámos à Assembleia da República em Maio de 2005. A coordenação portuguesa da Marcha tem acompanhado as reuniões de preparação do Fórum Social Português [Almada, Outubro 2006]. Por outro lado, pensa estar presente em manifestações, em debates, e onde quer que faça sentido fazer ouvir a voz das mulheres.
[Por iniciativa da Coordenação Portuguesa da Marcha Mundial das Mulheres irá realizar-se em Coimbra, no próximo dia 14 de Abril, o Encontro Nacional de Mulheres.]
Cristina L. Duarte
20.2.07
19.2.07
14.2.07
Enamoramento
10.2.07
9.2.07
Natália
«O acto sexual é para ter filhos» - disse na Assembleia da República, no dia 3 de Abril de 1982, o então deputado do CDS João Morgado num debate sobre a legalização do aborto.
A resposta de Natália Correia, em poema - publicado depois pelo Diário de
Lisboa em 5 de Abril desse ano - fez rir todas as bancadas parlamentares, tendo os trabalhos parlamentares sido interrompidos por isso:
«Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
Uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.»
Natália Correia (a 3 de Abril de 1982 )
A resposta de Natália Correia, em poema - publicado depois pelo Diário de
Lisboa em 5 de Abril desse ano - fez rir todas as bancadas parlamentares, tendo os trabalhos parlamentares sido interrompidos por isso:
«Já que o coito - diz Morgado -
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou - parca ração! -
Uma vez. E se a função
faz o órgão - diz o ditado -
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.»
Natália Correia (a 3 de Abril de 1982 )
Faltam dois dias para o referendo
Vem aí o período da reflexão. O que é bom. Para tudo. Esse será o momento de reflexão, em que cada um(a) pensará, de acordo com a sua consciência, o voto que irá expressar no próximo domingo, e que mais não será do que responder sim ou não à pergunta «Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada por opção da mulher, nas primeiras dez semanas em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?».
Quem tiver passado pela Cidade das Mulheres na última semana terá visto coladas nas suas paredes virtuais material de divulgação pelo SIM. Imagens estáticas e em movimento, ideias e factos sobre o aborto em Portugal,enfim alguma coisa desta campanha para o referendo passou por aqui, como por outros blogues, sensíveis a esta problemática da sociedade civil. Todos os agentes sociais que se movem pelo respeito à mulher e à sua decisão têm tido um discurso edificante, matizado e enriquecido pela ética da sua profissão, qualquer que ela seja. Ora, este respeito tem um estranho e negro oposto, que é o desrespeito pela mulher, e consequentemente pelos direitos humanos. Serpenteava A Cidade das Mulheres pela cidade dos automóveis, e qual não é o (seu) espanto ao constatar que os senhores do «não» se apropriaram de um verso de Florbela Espanca para fazer a apologia do que eles pensam - pensarão? - que é o melhor: responder negativamente à pergunta do referendo. Quem dera que não se apropriassem de uma forma abusiva, totalitária e desrespeitadora do nome e da obra de uma escritora como Florbela Espanca (8.12.1894-8.12.1930), que se afirmou da forma mais independente que conseguiu no seu tempo: «Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser / Há-se ser luz do Sol em tardes quentes; »
Concentremo-nos. Sentemo-nos.
Cristina L. Duarte
Quem tiver passado pela Cidade das Mulheres na última semana terá visto coladas nas suas paredes virtuais material de divulgação pelo SIM. Imagens estáticas e em movimento, ideias e factos sobre o aborto em Portugal,enfim alguma coisa desta campanha para o referendo passou por aqui, como por outros blogues, sensíveis a esta problemática da sociedade civil. Todos os agentes sociais que se movem pelo respeito à mulher e à sua decisão têm tido um discurso edificante, matizado e enriquecido pela ética da sua profissão, qualquer que ela seja. Ora, este respeito tem um estranho e negro oposto, que é o desrespeito pela mulher, e consequentemente pelos direitos humanos. Serpenteava A Cidade das Mulheres pela cidade dos automóveis, e qual não é o (seu) espanto ao constatar que os senhores do «não» se apropriaram de um verso de Florbela Espanca para fazer a apologia do que eles pensam - pensarão? - que é o melhor: responder negativamente à pergunta do referendo. Quem dera que não se apropriassem de uma forma abusiva, totalitária e desrespeitadora do nome e da obra de uma escritora como Florbela Espanca (8.12.1894-8.12.1930), que se afirmou da forma mais independente que conseguiu no seu tempo: «Eu não sou de ninguém!... Quem me quiser / Há-se ser luz do Sol em tardes quentes; »
Concentremo-nos. Sentemo-nos.
Cristina L. Duarte
8.2.07
Um olhar sobre a Despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez
Como membro de uma associação de mulheres que se reclama de feminista, que fez o ano passado 30 anos de vida e que tem dado a este tema muita da sua dedicação e activismo, gostaria de compartilhar convosco as razões que nos levam a participar no campo do SIM na campanha do referendo de 11 de Fevereiro.
Gostaria de começar por falar um pouco da história recente desta luta. Com o 25 de Abril de 1974 e apesar de logo a 4 de Maio desse mesmo ano o MLM ter feito sair uma brochura com a reivindicação do “direito ao aborto livre e gratuito e campanha de educação sexual”, esta luta teve vários episódios e protagonistas que deverão ser lembrados para se entender os enormes avanços que foram dados mas também para se constatar que passados 32 anos, continuamos a ser o único país da Europa que leva mulheres a sentarem-se no banco dos tribunais por terem abortado.
Em Fevereiro de 1976, as jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa apresentam uma reportagem sobre o aborto num programa na RTP, a qual foi motivo de comunicados de condenação por parte da Ordem dos Médicos, do PDC, do CDS e do PPD. Maria Antónia Palla viria a ser julgada em Maio de 1979 devido a essa reportagem e absolvida em Junho do mesmo ano.
Data de Março de 1976 um despacho da Secretaria de Estado da Saúde assinado pelo médico Albino Aroso permitindo consultas de planeamento familiar, onde se refere o “elevado número de abortos, calculado em mais de 100 mil”.
A primeira petição com 5 mil assinaturas entregue na Assembleia da República a exigir a legalização do aborto data de Março de 1977.
Em 1979 ocorre também o julgamento de uma jovem alentejana Conceição Massano, acusada de ter abortado.
É na década de 80 que surgem os primeiros projectos-lei sobre a despenalização do aborto e outros sobre maternidade e planeamento familiar e a AR é palco de concentrações de mulheres e de organizações, ficando célebre a cena das 12 mulheres que nas galerias da AR exibiram as T-shirts onde se lia “Nós Abortámos”. O projecto em discussão não passou por 22 votos e a sessão plenária ficou marcada pelo poema de Natália Correia ao deputado João Morgado do CDS.
Finalmente em 1984 foram aprovadas 3 leis, entre as quais a lei 6/84 que vai alterar o Código Penal, excluindo de ilicitude o aborto em três circunstâncias. Apesar desta importante alteração no panorama do aborto em Portugal, desde logo a lei foi considerada muito insuficiente sendo a sua interpretação muito limitada e a aplicação muito restritiva.
Nos 10 anos que se seguiram, e segundo dados oficiais da Direcção Geral de Saúde, praticaram-se em Portugal 716 IVG legais, foram registados 730 casos de complicações e ocorreram 46 mortes de mulheres em consequência de aborto clandestino. A APF entretanto estima que se realizaram 16 000 abortos clandestinos em 1993.
Na década de 90, grupos de trabalho integrando diversos organizações, mantêm o objectivo de lutar pela alteração da lei. Embora sem o mediatismo e a visibilidade dos julgamentos ocorridos em Portugal a partir do ano 2000, é do início dos anos 90 um processo instaurado pela PJ através da apreensão de uma agenda de uma parteira da Rua da Bica onde constava o nome de 1200 mulheres. As Conferências internacionais promovidas pela ONU neste período – a do Cairo em 1994 sobre População e Desenvolvimento e a de Pequim em 1995 sobre as Mulheres, donde resultou uma Plataforma de Acção – dão também um importante impulso a esta causa dos direitos sexuais e reprodutivos na medida em que delas saem recomendações aos Estados no sentido da promoção de direitos e de protecção à saúde das mulheres. Tendo em conta a ineficácia da lei que não acaba com o aborto clandestino, ao longo de 1996 são apresentados na AR projectos-lei de despenalização do aborto a pedido da mulher. É do início de 1997 uma campanha patrocinada pela Igreja e pelo grupo “Juntos pela Vida” contra a despenalização a que chamaram “Não mates o Zezinho” tendo nessa altura a UMAR lançado a linha SOS Aborto e o MODAP entregue ao Presidente da AR um dossier com 15 000 assinaturas de cidadãos e cidadãs favoráveis à alteração da lei.
O projecto-lei da JS não passa por um voto e poucos dias depois, a 8 de Março de 1997, morre uma mulher – Liseta Moreira – no Bairro de Aldoar, no Porto, em consequência de um aborto clandestino. De novo, em 1998, o PCP e a JS apresentam novos projectos-lei, tendo o do PCP chumbado por 3 votos e o da JS sido aprovado. Mas, logo no dia seguinte, o processo legislativo que estava em aberto para ser trabalhado na especialidade, foi interrompido através de um acordo assinado pelo PS e pelo PSD no sentido da realização de um referendo que se realizou a 28 de Junho de 1998. Embora não sendo vinculativo pois a abstenção foi superior a 60%, o Não contou com 51% de votantes e o SIM com 49%.
Após o referendo, ao mesmo tempo que os movimentos pela despenalização se reorganizam, novos diplomas e iniciativas são apresentadas na AR sobre várias temáticas integradas nos direitos sexuais e reprodutivos: reforço das garantias do direito à saúde reprodutiva, projectos de lei de despenalização, contracepção de emergência, medidas para a educação sexual nas escolas, acesso aos medicamentos de contracepção de emergência e gravidez na adolescência.
Em 2001 inicia-se o processo da Maia, um mega julgamento envolvendo 43 arguidos, sendo 17 mulheres entre eles acusadas do crime de aborto. No dia da leitura da sentença, a 18 de Janeiro de 2002, para além da parteira enfermeira condenada a oito anos e meio de prisão, só uma mulher que não acatou o conselho do advogado para se remeter ao silêncio foi condenada a uma pena de prisão de 4 meses que foi substituída por uma multa de 120€, recolhidos pelas e pelos activistas concentrados à porta do Tribunal da Boa Hora e do Tribunal da Maia. Essa jovem mulher, hoje com 29 anos, pobre e doente, tinha uma filha com problemas respiratórios, estava desempregada e separada do homem que lhe infligia maus tratos. Foi o próprio tribunal a admitir o grande sofrimento causado àquela mulher pela exposição pública da sua vida privada A outra mulher que rompeu o silêncio não foi condenada visto ter abortado há mais de 5 anos e, por isso o seu crime ter prescrito. As restantes foram absolvidas. Mas nada nem ninguém lhes fará esquecer a dor, a humilhação que constituiu as várias sessões do julgamento, a somar-se à aflição por descobrirem estar grávidas e sem dinheiro para sustentar mais uma boca e a inevitabilidade de encontrarem alguém e o dinheiro para desmanchar uma gravidez não desejada. Algumas pagarem com as alianças, com um fio de ouro, ou com o abono dos filhos. O palco deste sórdido julgamento, noticiado no estrangeiro como um processo que nos coloca na cauda da Europa, foi o Complexo Desportivo da Maia, dado as instalações do tribunal da Maia não terem capacidade para comportar um julgamento desta envergadura. A solidariedade que se fez sentir à porta da Maia e na Boa-Hora, ao longo das várias sessões do julgamento e no dia da leitura da sentença passou fronteiras e foi inscrita através do punho de 1104 subscritores entre os quais diversos deputados europeus e eminentes intelectuais como Noam Chomsky e Pierre Bourdieu.
Estávamos bem lembrados/as das declarações daqueles que em 1998 apelaram ao Não no referendo que não iria haver julgamentos, que a lei que aplicava até 3 anos de prisão não era para ser cumprida!
Depois Aveiro, Lisboa e Setúbal.
Em Aveiro, 2004, 17 arguidos são absolvidos por falta de provas, mas o processo é reaberto em Julho de 2006, acusando três mulheres a seis meses de prisão por um aborto que tinham feito nove anos antes! Igualmente condenados o médico e a recepcionista do consultório. Os exames ginecológicos feitos ilegalmente às três mulheres à saída do consultório, foram considerados legais. De destacar a voz do Bispo do Porto D. Armindo Lopes Coelho que em Dezembro 2003 afirma “O aborto não deve ser penalizado!”
O processo de Lisboa também em 2004 foi o que teve um desfecho mais rápido. A juíza, perante a jovem de 21 anos que interrompera uma gravidez 4 anos antes, denunciada por um enfermeiro à PSP por ter ido parar ao hospital após ingestão de um medicamento, considerou que ela era ainda demasiado menina para todo aquele sofrimento e humilhação e absolveu-a.
Setúbal foi também um processo grotesco. Iniciado em 2004 e com desfecho em 2005, implicou duas jovens mulheres e uma enfermeira-parteira. Uma das jovens, viu a sala onde estava a ser feita a interrupção invadida por agentes policiais, não tendo por isso, podido interromper a gravidez! Absolvidas as duas jovens, a enfermeira-parteira aguarda a continuação do julgamento.
Processos que mais fazem lembrar um filme neo-realista. Que nos fazem reviver a cena de Vera Drake no dia em que a polícia entrou pela sua casa para a levar para a esquadra. Mas Vera Drake só queria ajudar aquelas raparigas e estávamos nos anos 50 na fria Inglaterra, não no soalheiro e acolhedor país dos bons costumes, em pleno século XXI e num novo milénio. Imediatamente após o referendo de 1998, Paula Rego marcou com o seu traço vigoroso e magoado um conjunto de telas centradas no tema do aborto clandestino.
A cerca de 20 dias do referendo, convém recordar este trajecto feito de sofrimento, de violência, de clandestinidade, de humilhação, mas também de luta e solidariedade. O que está em causa é uma questão para a qual todos e todas somos convocados a dar uma resposta. Se queremos ou não acabar com o aborto clandestino? Se queremos acabar com a criminalização das mulheres que decidirem até às dez semanas interromper uma gravidez indesejada ou não planeada? Se consideram ou não que o Estado deve garantir a resolução deste problema de saúde em estabelecimento de saúde legalmente autorizado? Se queremos acompanhar a maioria dos países evoluídos da Europa que nas décadas de 70 e 80 criaram leis despenalizadoras e tomaram medidas sérias no campo do planeamento familiar, na informação sobre meios contraceptivos e educação sexual, de modo a pôr fim ao aborto clandestino?
A todas estas perguntas a nossa resposta é, sem dúvida, SIM.
Almerinda Bento
(União de Mulheres Alternativa e Resposta – UMAR)
Gostaria de começar por falar um pouco da história recente desta luta. Com o 25 de Abril de 1974 e apesar de logo a 4 de Maio desse mesmo ano o MLM ter feito sair uma brochura com a reivindicação do “direito ao aborto livre e gratuito e campanha de educação sexual”, esta luta teve vários episódios e protagonistas que deverão ser lembrados para se entender os enormes avanços que foram dados mas também para se constatar que passados 32 anos, continuamos a ser o único país da Europa que leva mulheres a sentarem-se no banco dos tribunais por terem abortado.
Em Fevereiro de 1976, as jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa apresentam uma reportagem sobre o aborto num programa na RTP, a qual foi motivo de comunicados de condenação por parte da Ordem dos Médicos, do PDC, do CDS e do PPD. Maria Antónia Palla viria a ser julgada em Maio de 1979 devido a essa reportagem e absolvida em Junho do mesmo ano.
Data de Março de 1976 um despacho da Secretaria de Estado da Saúde assinado pelo médico Albino Aroso permitindo consultas de planeamento familiar, onde se refere o “elevado número de abortos, calculado em mais de 100 mil”.
A primeira petição com 5 mil assinaturas entregue na Assembleia da República a exigir a legalização do aborto data de Março de 1977.
Em 1979 ocorre também o julgamento de uma jovem alentejana Conceição Massano, acusada de ter abortado.
É na década de 80 que surgem os primeiros projectos-lei sobre a despenalização do aborto e outros sobre maternidade e planeamento familiar e a AR é palco de concentrações de mulheres e de organizações, ficando célebre a cena das 12 mulheres que nas galerias da AR exibiram as T-shirts onde se lia “Nós Abortámos”. O projecto em discussão não passou por 22 votos e a sessão plenária ficou marcada pelo poema de Natália Correia ao deputado João Morgado do CDS.
Finalmente em 1984 foram aprovadas 3 leis, entre as quais a lei 6/84 que vai alterar o Código Penal, excluindo de ilicitude o aborto em três circunstâncias. Apesar desta importante alteração no panorama do aborto em Portugal, desde logo a lei foi considerada muito insuficiente sendo a sua interpretação muito limitada e a aplicação muito restritiva.
Nos 10 anos que se seguiram, e segundo dados oficiais da Direcção Geral de Saúde, praticaram-se em Portugal 716 IVG legais, foram registados 730 casos de complicações e ocorreram 46 mortes de mulheres em consequência de aborto clandestino. A APF entretanto estima que se realizaram 16 000 abortos clandestinos em 1993.
Na década de 90, grupos de trabalho integrando diversos organizações, mantêm o objectivo de lutar pela alteração da lei. Embora sem o mediatismo e a visibilidade dos julgamentos ocorridos em Portugal a partir do ano 2000, é do início dos anos 90 um processo instaurado pela PJ através da apreensão de uma agenda de uma parteira da Rua da Bica onde constava o nome de 1200 mulheres. As Conferências internacionais promovidas pela ONU neste período – a do Cairo em 1994 sobre População e Desenvolvimento e a de Pequim em 1995 sobre as Mulheres, donde resultou uma Plataforma de Acção – dão também um importante impulso a esta causa dos direitos sexuais e reprodutivos na medida em que delas saem recomendações aos Estados no sentido da promoção de direitos e de protecção à saúde das mulheres. Tendo em conta a ineficácia da lei que não acaba com o aborto clandestino, ao longo de 1996 são apresentados na AR projectos-lei de despenalização do aborto a pedido da mulher. É do início de 1997 uma campanha patrocinada pela Igreja e pelo grupo “Juntos pela Vida” contra a despenalização a que chamaram “Não mates o Zezinho” tendo nessa altura a UMAR lançado a linha SOS Aborto e o MODAP entregue ao Presidente da AR um dossier com 15 000 assinaturas de cidadãos e cidadãs favoráveis à alteração da lei.
O projecto-lei da JS não passa por um voto e poucos dias depois, a 8 de Março de 1997, morre uma mulher – Liseta Moreira – no Bairro de Aldoar, no Porto, em consequência de um aborto clandestino. De novo, em 1998, o PCP e a JS apresentam novos projectos-lei, tendo o do PCP chumbado por 3 votos e o da JS sido aprovado. Mas, logo no dia seguinte, o processo legislativo que estava em aberto para ser trabalhado na especialidade, foi interrompido através de um acordo assinado pelo PS e pelo PSD no sentido da realização de um referendo que se realizou a 28 de Junho de 1998. Embora não sendo vinculativo pois a abstenção foi superior a 60%, o Não contou com 51% de votantes e o SIM com 49%.
Após o referendo, ao mesmo tempo que os movimentos pela despenalização se reorganizam, novos diplomas e iniciativas são apresentadas na AR sobre várias temáticas integradas nos direitos sexuais e reprodutivos: reforço das garantias do direito à saúde reprodutiva, projectos de lei de despenalização, contracepção de emergência, medidas para a educação sexual nas escolas, acesso aos medicamentos de contracepção de emergência e gravidez na adolescência.
Em 2001 inicia-se o processo da Maia, um mega julgamento envolvendo 43 arguidos, sendo 17 mulheres entre eles acusadas do crime de aborto. No dia da leitura da sentença, a 18 de Janeiro de 2002, para além da parteira enfermeira condenada a oito anos e meio de prisão, só uma mulher que não acatou o conselho do advogado para se remeter ao silêncio foi condenada a uma pena de prisão de 4 meses que foi substituída por uma multa de 120€, recolhidos pelas e pelos activistas concentrados à porta do Tribunal da Boa Hora e do Tribunal da Maia. Essa jovem mulher, hoje com 29 anos, pobre e doente, tinha uma filha com problemas respiratórios, estava desempregada e separada do homem que lhe infligia maus tratos. Foi o próprio tribunal a admitir o grande sofrimento causado àquela mulher pela exposição pública da sua vida privada A outra mulher que rompeu o silêncio não foi condenada visto ter abortado há mais de 5 anos e, por isso o seu crime ter prescrito. As restantes foram absolvidas. Mas nada nem ninguém lhes fará esquecer a dor, a humilhação que constituiu as várias sessões do julgamento, a somar-se à aflição por descobrirem estar grávidas e sem dinheiro para sustentar mais uma boca e a inevitabilidade de encontrarem alguém e o dinheiro para desmanchar uma gravidez não desejada. Algumas pagarem com as alianças, com um fio de ouro, ou com o abono dos filhos. O palco deste sórdido julgamento, noticiado no estrangeiro como um processo que nos coloca na cauda da Europa, foi o Complexo Desportivo da Maia, dado as instalações do tribunal da Maia não terem capacidade para comportar um julgamento desta envergadura. A solidariedade que se fez sentir à porta da Maia e na Boa-Hora, ao longo das várias sessões do julgamento e no dia da leitura da sentença passou fronteiras e foi inscrita através do punho de 1104 subscritores entre os quais diversos deputados europeus e eminentes intelectuais como Noam Chomsky e Pierre Bourdieu.
Estávamos bem lembrados/as das declarações daqueles que em 1998 apelaram ao Não no referendo que não iria haver julgamentos, que a lei que aplicava até 3 anos de prisão não era para ser cumprida!
Depois Aveiro, Lisboa e Setúbal.
Em Aveiro, 2004, 17 arguidos são absolvidos por falta de provas, mas o processo é reaberto em Julho de 2006, acusando três mulheres a seis meses de prisão por um aborto que tinham feito nove anos antes! Igualmente condenados o médico e a recepcionista do consultório. Os exames ginecológicos feitos ilegalmente às três mulheres à saída do consultório, foram considerados legais. De destacar a voz do Bispo do Porto D. Armindo Lopes Coelho que em Dezembro 2003 afirma “O aborto não deve ser penalizado!”
O processo de Lisboa também em 2004 foi o que teve um desfecho mais rápido. A juíza, perante a jovem de 21 anos que interrompera uma gravidez 4 anos antes, denunciada por um enfermeiro à PSP por ter ido parar ao hospital após ingestão de um medicamento, considerou que ela era ainda demasiado menina para todo aquele sofrimento e humilhação e absolveu-a.
Setúbal foi também um processo grotesco. Iniciado em 2004 e com desfecho em 2005, implicou duas jovens mulheres e uma enfermeira-parteira. Uma das jovens, viu a sala onde estava a ser feita a interrupção invadida por agentes policiais, não tendo por isso, podido interromper a gravidez! Absolvidas as duas jovens, a enfermeira-parteira aguarda a continuação do julgamento.
Processos que mais fazem lembrar um filme neo-realista. Que nos fazem reviver a cena de Vera Drake no dia em que a polícia entrou pela sua casa para a levar para a esquadra. Mas Vera Drake só queria ajudar aquelas raparigas e estávamos nos anos 50 na fria Inglaterra, não no soalheiro e acolhedor país dos bons costumes, em pleno século XXI e num novo milénio. Imediatamente após o referendo de 1998, Paula Rego marcou com o seu traço vigoroso e magoado um conjunto de telas centradas no tema do aborto clandestino.
A cerca de 20 dias do referendo, convém recordar este trajecto feito de sofrimento, de violência, de clandestinidade, de humilhação, mas também de luta e solidariedade. O que está em causa é uma questão para a qual todos e todas somos convocados a dar uma resposta. Se queremos ou não acabar com o aborto clandestino? Se queremos acabar com a criminalização das mulheres que decidirem até às dez semanas interromper uma gravidez indesejada ou não planeada? Se consideram ou não que o Estado deve garantir a resolução deste problema de saúde em estabelecimento de saúde legalmente autorizado? Se queremos acompanhar a maioria dos países evoluídos da Europa que nas décadas de 70 e 80 criaram leis despenalizadoras e tomaram medidas sérias no campo do planeamento familiar, na informação sobre meios contraceptivos e educação sexual, de modo a pôr fim ao aborto clandestino?
A todas estas perguntas a nossa resposta é, sem dúvida, SIM.
Almerinda Bento
(União de Mulheres Alternativa e Resposta – UMAR)
7.2.07
6.2.07
5.2.07
4.2.07
3.2.07
A CARTA – Parte VI
A ideia de se criar um «instrumento político comum» esteve presente na criação da Carta Mundial das Mulheres para a Humanidade, adoptada a 10 de Dezembro de 2004, em Kigali, no Ruanda, pelas delegadas presentes na 5ªReunião Internacional da Marcha Mundial das Mulheres, um novo tipo de movimento de mulheres.
A Carta pretende ser um texto fundador do mundo que as mulheres da Marcha Mundial querem construir. Ela é constituída por 31 afirmações, que se relacionam com cinco valores universais - IGUALDADE, LIBERDADE, SOLIDARIEDADE, JUSTIÇA E PAZ – partilhados pelo conjunto das mulheres da Marcha, independentemente das suas diferenças de origem, de cultura, de história, de religião ou de orientação sexual. Os valores, se bem que apresentados de um ponto de vista feminista, são igualmente partilhados por numerosos homens.
A Carta é fruto de um trabalho de consulta, de discussões e de negociações entre mulheres de vários países, que vivem realidades diversas.
A Carta tem a força de representar um consenso e a sabedoria de deixar um espaço de interpretação a partir destas realidades diversas, bem como transporta consigo a esperança de ver o mundo mudar para melhor e para o bem comum.
A Carta foi «enviada» para todo o mundo através de uma Estafeta Mundial a 8 de Março de 2005; chegou a Lisboa a 15 de Maio daquele ano, juntamente com a Manta da Solidariedade, para a qual o retalho português foi realizado pela criadora de moda Ana Salazar; a carta e a manta foram apresentadas publicamente a 16 de Maio na Biblioteca Museu da República e Resistência.
A Carta pretende ser um texto fundador do mundo que as mulheres da Marcha Mundial querem construir. Ela é constituída por 31 afirmações, que se relacionam com cinco valores universais - IGUALDADE, LIBERDADE, SOLIDARIEDADE, JUSTIÇA E PAZ – partilhados pelo conjunto das mulheres da Marcha, independentemente das suas diferenças de origem, de cultura, de história, de religião ou de orientação sexual. Os valores, se bem que apresentados de um ponto de vista feminista, são igualmente partilhados por numerosos homens.
A Carta é fruto de um trabalho de consulta, de discussões e de negociações entre mulheres de vários países, que vivem realidades diversas.
A Carta tem a força de representar um consenso e a sabedoria de deixar um espaço de interpretação a partir destas realidades diversas, bem como transporta consigo a esperança de ver o mundo mudar para melhor e para o bem comum.
A Carta foi «enviada» para todo o mundo através de uma Estafeta Mundial a 8 de Março de 2005; chegou a Lisboa a 15 de Maio daquele ano, juntamente com a Manta da Solidariedade, para a qual o retalho português foi realizado pela criadora de moda Ana Salazar; a carta e a manta foram apresentadas publicamente a 16 de Maio na Biblioteca Museu da República e Resistência.
2.2.07
Aborto, uma polémica de sempre
Portugal reinicia uma discussão onde parece continuar a haver demasiado «ruído». Ou como alguns temas nos recordam os limites da razão humana.
«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.
Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida. Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.
É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática» (idem, n. 62). Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» (www.criticanarede.com) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas».
Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.
Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.
Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.
A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus», (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.
Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora».
Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.
A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).
A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto.
As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.
O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.
ANA CRISTINA LEONARDO (jornalista)
«Um bebé não é um problema metafísico» foi uma frase que encheu as ruas de Paris, há cerca de 20 anos, durante uma campanha em prol da maternidade. Em Portugal, hoje, a discussão diz respeito ao aborto. Paula Teixeira da Cruz, do Movimento Voto Sim, afirmou que «não estamos a discutir nem a vida nem a morte. Recuso-me a discutir o problema nesses termos» (DN, 20-01-2007). A verdade é que muitos insistem em fazê-lo.
Não sendo os bebés, definitivamente, um problema metafísico, há questões levantadas pelos opositores do Sim que nos deixam na dúvida sobre se não o serão o zigoto, o embrião e o feto. Um dos argumentos mais publicitados pelo Não assenta no seguinte raciocínio: (premissa a) o feto é, em potência, um ser humano; (premissa b) todos os seres humanos, mesmo os seres humanos em potência, têm direito à vida; (conclusão): o feto tem direito à vida. Daí se infere que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) é atentatória desse direito, logo, um crime, um crime parente próximo do homicídio.
É esta, aliás, a posição oficial da Igreja católica, que classifica o aborto como um dos pecados sujeitos a excomunhão (e isto apesar de algumas vozes discordantes, como a do padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, que propõe a distinção entre vida, vida humana e pessoa humana): «A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio (...)» (João Paulo II, Enc. Evangelium Vitae, 25/03/1995, n. 58); e ainda: «Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que "quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae", isto é, automática» (idem, n. 62). Mas, a não ser que se faça da vida humana uma leitura religiosa – e essa é uma posição legítima embora, obviamente, impossível de sujeitar a referendo – a argumentação atrás exposta, contrária à IVG, não parece defensável. Porque se o que falta provar é, precisamente, que todos os seres humanos em potência têm direito à vida, não se pode, ao mesmo tempo, afirmá-lo como premissa sem incorrer em falácia. O filósofo Pedro Madeira vai mais longe. Em «Argumentos sobre o Aborto» (www.criticanarede.com) acrescenta: «(...) é, de qualquer modo, falso que, se um ser tem potencialmente um direito, então tem, efectivamente, esse direito. Enquanto cidadão português, sou potencialmente presidente da República; o presidente da República é o Comandante Supremo das Forças Armadas; no entanto, daí não se segue que eu seja agora o Comandante Supremo das Forças Armadas».
Do lado do Sim, insiste-se nas condições sócio-económicas das mulheres desfavorecidas e na realidade dos números, apesar da lei proibitiva. São razões fracas, que pecam por circularidade. Porque do facto dos cidadãos carenciados terem menos condições para contratar um assassino não resulta que o Estado deva disponibilizar um serviço grátis de gangsteres ao domicílio. Assim como do facto de existirem ladrões, apesar da lei proibitiva, não se infere que o roubo deva ser legalizado. Note-se que esta contestação aos argumentos do Sim, não implica uma equivalência moral dos exemplos. Apenas se pretende mostrar que, nos casos expostos, a sustentabilidade da argumentação é difícil, se não impossível.
Nada disto é novo. O aborto nunca foi um facto pacífico. No Ocidente, durante a Antiguidade, a sua regulamentação, regra geral, apenas tinha em conta os interesses masculinos e, consequentemente, só era punível quando estes eram lesados: «Estigmatizado como sinal de decadência dos costumes ou visto como atentado à ordem familiar e social, o aborto é considerado uma manifestação de inaceitável autonomia feminina» (in História do Aborto, Giulia Galeotti, Edições 70, 2007). Pelo menos até ao século XVIII, o aborto é encarado como um assunto de mulheres. Rodeado de insondáveis mistérios, à semelhança de tudo quanto dizia respeito ao segundo sexo: não por acaso, durante o longo período da «caça às bruxas», que vai do século XIV ao XVII, uma das acusações mais recorrentes é a das práticas abortivas.
Com o cristianismo a impor-se como religião do Estado, o aborto ganhará o estatuto de «crime abominável», um pecado que atenta contra a acção criadora de Deus, destruindo uma criatura que Lhe pertence. Apesar deste princípio geral, a posição sobre o momento em que o feto passa plenamente a pessoa não será unânime. Embora contrário ao aborto, é Santo Agostinho quem avança com a posição mais tolerante, alicerçada na teoria da animação diferida, que faz atrasar o aparecimento da alma em relação ao momento da concepção: «não é homicida quem provoca o aborto antes da infusão da alma no corpo», sugerindo-se que esta surge nos rapazes aos 40 dias e nas raparigas aos 80. A polémica atravessará séculos: em 1558, o Papa Sisto V publica a bula Effraenatam, que condena à excomunhão todos os que provocarem o aborto, sem fazer distinção entre feto animado ou não animado. Em 1591, Gregório XIV retoma a posição agostiniana. Em 1679, Inocêncio XI vem reafirmar que o nascituro é pessoa desde o momento da concepção… Como se vê, a discussão sobre o estatuto do zigoto, do embrião e do feto (embora sob outros nomes) é coisa antiga.
A ciência acabaria por ser chamada à colação, na medida exacta em que se interessa cada vez mais pelos segredos da vida intra-uterina. Quando, em 1762, Charles Bonnet propõe, em defesa do preformismo, que qualquer organismo já contém em si os futuros seres pré-formados a que dará origem, o naturalista suíço crê estar, não só a contribuir para o avanço da ciência como a confirmar a Génese bíblica. De acordo com o preformismo, desde o momento da concepção, ou o espermatozóide transporta em si um «homunculus», (animaculismo), ou este já está contido no óvulo (ovismo). A polémica entre preformismo e epigénese – hipótese proposta em 1759 pelo embriologista alemão Kaspar Friedrich Wolff, que, ao invés de Bonnet, defendia que as novas estruturas se iam formando progressivamente – foi um dos debates intelectuais mais acesos do século XVIII, só resolvido com a teoria celular, já no século seguinte.
Para todos os efeitos, é interessante sublinhar que então, como agora, as posições contrárias ao aborto, mesmo quando assentes em princípios religiosos mais ou menos assumidos, nunca deixaram de tentar credibilizar-se através da ciência. Vejam-se, por exemplo, as declarações actuais de Nuno Vieira, da Plataforma Não Obrigada, um dos muitos portugueses católicos que responderam à chamada do bispo de Leiria para ir a Fátima «celebrar a vida», esclarecendo que o movimento a que pertence está empenhado em dotar a sua campanha de «dados científicos», procurando utilizar uma «linguagem moderada e esclarecedora».
Se a religião sempre se pronunciou sobre o aborto, e também a ciência viria a intervir no debate, caberá ao Estado e ao Direito legislar sobre o tema. Aquilo a que alguns autores, nomeadamente Elisabeth Badinter, chamaram «a invenção da maternidade», ideia romântica que começa a propagar-se em finais do século XVIII e que desenha uma mulher plenamente realizada no seu papel de mãe, toda ela bondade e sentimentalismo, cruzar-se-á com os desígnios do poder político, que, pela primeira vez, irá defender o feto, agora não por motivos de fé mas por razões de Estado. A demografia torna-se ideologia (então, como agora, era necessário fazer aumentar a natalidade), a maternidade é explicitamente regulamentada e o aborto voluntário declarado contrário ao patriotismo nascente. Em 1810, o artigo 317 do Código Penal francês é claro: «Quem provocar aborto de uma mulher grávida com ou sem o seu consentimento (...) é punido com prisão». Em Portugal, o Código Penal de 1886 considera o aborto ilícito em todas as situações e, já no século XX, a tendência mantém-se, embora o Projecto da Parte Especial do Código Penal de 1966, do Prof. Eduardo Correia, previsse, como excepção, o aborto terapêutico (acrescente-se, a título de curiosidade, que a tese apresentada por Álvaro Cunhal em 1940 para o exame de 5º ano da Faculdade de Letras de Lisboa versava o tema: O Aborto - Causas e Soluções, Campo das Letras,1997). O que se verifica, portanto, é que após séculos a tecer, como Penélope, no recato das casas, as mulheres e, consequentemente, a maternidade, ganham uma exposição cada vez maior no espaço público, com todas as consequências daí decorrentes.
A grande alteração ao estado das coisas – tendencialmente repressivo da IVG (em França, por exemplo, em 1942, o aborto é considerado «crime contra o Estado» e sujeito à pena capital – ficará tristemente célebre o caso de Marie-Louise Giraud, guilhotinada a 9 de Junho de 1943 por práticas abortivas) – dar-se-á com a introdução, na década de 70, do argumento que pugna pelo «direito das mulheres ao seu próprio corpo». E, embora hoje em dia, este pareça ser um argumento em desvantagem na discussão, a sua consistente defesa pela filósofa Judith Jarvis Thomson em 1971 continua a ser uma referência inultrapassável (ver A Ética do Aborto, organização e tradução de Pedro Galvão, Dinalivro, 2005).
A grande viragem (mesmo se, já desde 1967, a legislação britânica fosse bastante tolerante na matéria) ocorre em 1970, quando, nos Estados Unidos, o Supremo Tribunal, no caso Roe versus Wade, decide a favor de a mulher poder escolher interromper a gravidez. Segundo Ronald Dworkin, especialista em filosofia do Direito, o que estava então em causa não dizia respeito «ao problema metafísico da pessoa do feto ou teológico da sua alma, mas sim ao problema jurídico de o feto ser ou não ser uma pessoa do ponto de vista constitucional» (in História do Aborto). E se Jane Roe dá hoje voz aos chamados movimentos Pró-vida, a decisão continua a fazer lei, apesar da insistência de George W. Bush em atribuir personalidade jurídica ao feto.
As palavras de Ronald Dworkin poderão, eventualmente, agradar a Paula Teixeira da Cruz. Afinal, colocar a questão do aborto em termos absolutos de vida ou de morte, não parece estar a levar a lugar nenhum, apresentando-se a própria comunidade científica dividida quanto ao assunto. Sendo, contudo, irrecusável, que no debate sobre a IVG, seja ela encarada sob o prisma do Direito ou da Saúde Pública, se introduz um irrecusável problema moral, dificilmente a discussão ética poderá ser varrida para debaixo de tapete.
O caso ocorrido na Irlanda em 1992, que envolveu uma adolescente grávida que ameaçou suicidar-se se não lhe fosse permitido interromper a gravidez, talvez seja exemplo suficiente para percebermos os limites do que está em causa. Sendo a Irlanda, juntamente com Portugal, Polónia e Malta, dos países europeus com legislação mais repressiva na matéria, o Supremo Tribunal irlandês levantaria a interdição da jovem se deslocar ao estrangeiro, e esta pôde abortar em Inglaterra. Ora isto, independentemente da posição de cada um sobre a moralidade do aborto, deixa-nos perante a questão mais radical de todas: como obrigar uma mulher grávida que não quer ser mãe a sê-lo? O que nos conduz a uma segunda pergunta: até onde pode o Estado interferir nas decisões individuais dos seus cidadãos? É que, independentemente de concordarmos ou não com o argumento do «direito ao corpo», independentemente de aceitarmos ou não a existência de um conflito de interesses entre o estatuto da mulher e do feto, e, até independentemente de nos colocarmos de um lado ou de outro, o que é inegável é que a Natureza atribuiu à mulher o poder da maternidade. Enquanto assim for, não há legislação que possa mudar esse facto.
ANA CRISTINA LEONARDO (jornalista)
1.2.07
«People Have the Power»
I was dreaming in my dreaming
of an aspect bright and fair
and my sleeping it was broken
but my dream it lingered near
in the form of shining valleys
where the pure air recognized
and my senses newly opened
I awakened to the cry
that the people / have the power
to redeem / the work of fools
upon the meek / the graces shower
it's decreed / the people rule
The people have the power
The people have the power
The people have the power
The people have the power
Vengeful aspects became suspect
and bending low as if to hear
and the armies ceased advancing
because the people had their ear
and the shepherds and the soldiers
lay beneath the stars
exchanging visions
and laying arms
to waste / in the dust
in the form of / shining valleys
where the pure air / recognized
and my senses / newly opened
I awakened / to the cry
Refrain
Where there were deserts
I saw fountains
like cream the waters rise
and we strolled there together
with none to laugh or criticize
and the leopard
and the lamb
lay together truly bound
I was hoping in my hoping
to recall what I had found
I was dreaming in my dreaming
god knows / a purer view
as I surrender to my sleeping
I commit my dream to you
Refrain
The power to dream / to rule
to wrestle the world from fools
it's decreed the people rule
it's decreed the people rule
LISTEN
I believe everything we dream
can come to pass through our union
we can turn the world around
we can turn the earth's revolution
we have the power
People have the power ...
PATTI SMITH
of an aspect bright and fair
and my sleeping it was broken
but my dream it lingered near
in the form of shining valleys
where the pure air recognized
and my senses newly opened
I awakened to the cry
that the people / have the power
to redeem / the work of fools
upon the meek / the graces shower
it's decreed / the people rule
The people have the power
The people have the power
The people have the power
The people have the power
Vengeful aspects became suspect
and bending low as if to hear
and the armies ceased advancing
because the people had their ear
and the shepherds and the soldiers
lay beneath the stars
exchanging visions
and laying arms
to waste / in the dust
in the form of / shining valleys
where the pure air / recognized
and my senses / newly opened
I awakened / to the cry
Refrain
Where there were deserts
I saw fountains
like cream the waters rise
and we strolled there together
with none to laugh or criticize
and the leopard
and the lamb
lay together truly bound
I was hoping in my hoping
to recall what I had found
I was dreaming in my dreaming
god knows / a purer view
as I surrender to my sleeping
I commit my dream to you
Refrain
The power to dream / to rule
to wrestle the world from fools
it's decreed the people rule
it's decreed the people rule
LISTEN
I believe everything we dream
can come to pass through our union
we can turn the world around
we can turn the earth's revolution
we have the power
People have the power ...
PATTI SMITH
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