Como membro de uma associação de mulheres que se reclama de feminista, que fez o ano passado 30 anos de vida e que tem dado a este tema muita da sua dedicação e activismo, gostaria de compartilhar convosco as razões que nos levam a participar no campo do SIM na campanha do referendo de 11 de Fevereiro.
Gostaria de começar por falar um pouco da história recente desta luta. Com o 25 de Abril de 1974 e apesar de logo a 4 de Maio desse mesmo ano o MLM ter feito sair uma brochura com a reivindicação do “direito ao aborto livre e gratuito e campanha de educação sexual”, esta luta teve vários episódios e protagonistas que deverão ser lembrados para se entender os enormes avanços que foram dados mas também para se constatar que passados 32 anos, continuamos a ser o único país da Europa que leva mulheres a sentarem-se no banco dos tribunais por terem abortado.
Em Fevereiro de 1976, as jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa apresentam uma reportagem sobre o aborto num programa na RTP, a qual foi motivo de comunicados de condenação por parte da Ordem dos Médicos, do PDC, do CDS e do PPD. Maria Antónia Palla viria a ser julgada em Maio de 1979 devido a essa reportagem e absolvida em Junho do mesmo ano.
Data de Março de 1976 um despacho da Secretaria de Estado da Saúde assinado pelo médico Albino Aroso permitindo consultas de planeamento familiar, onde se refere o “elevado número de abortos, calculado em mais de 100 mil”.
A primeira petição com 5 mil assinaturas entregue na Assembleia da República a exigir a legalização do aborto data de Março de 1977.
Em 1979 ocorre também o julgamento de uma jovem alentejana Conceição Massano, acusada de ter abortado.
É na década de 80 que surgem os primeiros projectos-lei sobre a despenalização do aborto e outros sobre maternidade e planeamento familiar e a AR é palco de concentrações de mulheres e de organizações, ficando célebre a cena das 12 mulheres que nas galerias da AR exibiram as T-shirts onde se lia “Nós Abortámos”. O projecto em discussão não passou por 22 votos e a sessão plenária ficou marcada pelo poema de Natália Correia ao deputado João Morgado do CDS.
Finalmente em 1984 foram aprovadas 3 leis, entre as quais a lei 6/84 que vai alterar o Código Penal, excluindo de ilicitude o aborto em três circunstâncias. Apesar desta importante alteração no panorama do aborto em Portugal, desde logo a lei foi considerada muito insuficiente sendo a sua interpretação muito limitada e a aplicação muito restritiva.
Nos 10 anos que se seguiram, e segundo dados oficiais da Direcção Geral de Saúde, praticaram-se em Portugal 716 IVG legais, foram registados 730 casos de complicações e ocorreram 46 mortes de mulheres em consequência de aborto clandestino. A APF entretanto estima que se realizaram 16 000 abortos clandestinos em 1993.
Na década de 90, grupos de trabalho integrando diversos organizações, mantêm o objectivo de lutar pela alteração da lei. Embora sem o mediatismo e a visibilidade dos julgamentos ocorridos em Portugal a partir do ano 2000, é do início dos anos 90 um processo instaurado pela PJ através da apreensão de uma agenda de uma parteira da Rua da Bica onde constava o nome de 1200 mulheres. As Conferências internacionais promovidas pela ONU neste período – a do Cairo em 1994 sobre População e Desenvolvimento e a de Pequim em 1995 sobre as Mulheres, donde resultou uma Plataforma de Acção – dão também um importante impulso a esta causa dos direitos sexuais e reprodutivos na medida em que delas saem recomendações aos Estados no sentido da promoção de direitos e de protecção à saúde das mulheres. Tendo em conta a ineficácia da lei que não acaba com o aborto clandestino, ao longo de 1996 são apresentados na AR projectos-lei de despenalização do aborto a pedido da mulher. É do início de 1997 uma campanha patrocinada pela Igreja e pelo grupo “Juntos pela Vida” contra a despenalização a que chamaram “Não mates o Zezinho” tendo nessa altura a UMAR lançado a linha SOS Aborto e o MODAP entregue ao Presidente da AR um dossier com 15 000 assinaturas de cidadãos e cidadãs favoráveis à alteração da lei.
O projecto-lei da JS não passa por um voto e poucos dias depois, a 8 de Março de 1997, morre uma mulher – Liseta Moreira – no Bairro de Aldoar, no Porto, em consequência de um aborto clandestino. De novo, em 1998, o PCP e a JS apresentam novos projectos-lei, tendo o do PCP chumbado por 3 votos e o da JS sido aprovado. Mas, logo no dia seguinte, o processo legislativo que estava em aberto para ser trabalhado na especialidade, foi interrompido através de um acordo assinado pelo PS e pelo PSD no sentido da realização de um referendo que se realizou a 28 de Junho de 1998. Embora não sendo vinculativo pois a abstenção foi superior a 60%, o Não contou com 51% de votantes e o SIM com 49%.
Após o referendo, ao mesmo tempo que os movimentos pela despenalização se reorganizam, novos diplomas e iniciativas são apresentadas na AR sobre várias temáticas integradas nos direitos sexuais e reprodutivos: reforço das garantias do direito à saúde reprodutiva, projectos de lei de despenalização, contracepção de emergência, medidas para a educação sexual nas escolas, acesso aos medicamentos de contracepção de emergência e gravidez na adolescência.
Em 2001 inicia-se o processo da Maia, um mega julgamento envolvendo 43 arguidos, sendo 17 mulheres entre eles acusadas do crime de aborto. No dia da leitura da sentença, a 18 de Janeiro de 2002, para além da parteira enfermeira condenada a oito anos e meio de prisão, só uma mulher que não acatou o conselho do advogado para se remeter ao silêncio foi condenada a uma pena de prisão de 4 meses que foi substituída por uma multa de 120€, recolhidos pelas e pelos activistas concentrados à porta do Tribunal da Boa Hora e do Tribunal da Maia. Essa jovem mulher, hoje com 29 anos, pobre e doente, tinha uma filha com problemas respiratórios, estava desempregada e separada do homem que lhe infligia maus tratos. Foi o próprio tribunal a admitir o grande sofrimento causado àquela mulher pela exposição pública da sua vida privada A outra mulher que rompeu o silêncio não foi condenada visto ter abortado há mais de 5 anos e, por isso o seu crime ter prescrito. As restantes foram absolvidas. Mas nada nem ninguém lhes fará esquecer a dor, a humilhação que constituiu as várias sessões do julgamento, a somar-se à aflição por descobrirem estar grávidas e sem dinheiro para sustentar mais uma boca e a inevitabilidade de encontrarem alguém e o dinheiro para desmanchar uma gravidez não desejada. Algumas pagarem com as alianças, com um fio de ouro, ou com o abono dos filhos. O palco deste sórdido julgamento, noticiado no estrangeiro como um processo que nos coloca na cauda da Europa, foi o Complexo Desportivo da Maia, dado as instalações do tribunal da Maia não terem capacidade para comportar um julgamento desta envergadura. A solidariedade que se fez sentir à porta da Maia e na Boa-Hora, ao longo das várias sessões do julgamento e no dia da leitura da sentença passou fronteiras e foi inscrita através do punho de 1104 subscritores entre os quais diversos deputados europeus e eminentes intelectuais como Noam Chomsky e Pierre Bourdieu.
Estávamos bem lembrados/as das declarações daqueles que em 1998 apelaram ao Não no referendo que não iria haver julgamentos, que a lei que aplicava até 3 anos de prisão não era para ser cumprida!
Depois Aveiro, Lisboa e Setúbal.
Em Aveiro, 2004, 17 arguidos são absolvidos por falta de provas, mas o processo é reaberto em Julho de 2006, acusando três mulheres a seis meses de prisão por um aborto que tinham feito nove anos antes! Igualmente condenados o médico e a recepcionista do consultório. Os exames ginecológicos feitos ilegalmente às três mulheres à saída do consultório, foram considerados legais. De destacar a voz do Bispo do Porto D. Armindo Lopes Coelho que em Dezembro 2003 afirma “O aborto não deve ser penalizado!”
O processo de Lisboa também em 2004 foi o que teve um desfecho mais rápido. A juíza, perante a jovem de 21 anos que interrompera uma gravidez 4 anos antes, denunciada por um enfermeiro à PSP por ter ido parar ao hospital após ingestão de um medicamento, considerou que ela era ainda demasiado menina para todo aquele sofrimento e humilhação e absolveu-a.
Setúbal foi também um processo grotesco. Iniciado em 2004 e com desfecho em 2005, implicou duas jovens mulheres e uma enfermeira-parteira. Uma das jovens, viu a sala onde estava a ser feita a interrupção invadida por agentes policiais, não tendo por isso, podido interromper a gravidez! Absolvidas as duas jovens, a enfermeira-parteira aguarda a continuação do julgamento.
Processos que mais fazem lembrar um filme neo-realista. Que nos fazem reviver a cena de Vera Drake no dia em que a polícia entrou pela sua casa para a levar para a esquadra. Mas Vera Drake só queria ajudar aquelas raparigas e estávamos nos anos 50 na fria Inglaterra, não no soalheiro e acolhedor país dos bons costumes, em pleno século XXI e num novo milénio. Imediatamente após o referendo de 1998, Paula Rego marcou com o seu traço vigoroso e magoado um conjunto de telas centradas no tema do aborto clandestino.
A cerca de 20 dias do referendo, convém recordar este trajecto feito de sofrimento, de violência, de clandestinidade, de humilhação, mas também de luta e solidariedade. O que está em causa é uma questão para a qual todos e todas somos convocados a dar uma resposta. Se queremos ou não acabar com o aborto clandestino? Se queremos acabar com a criminalização das mulheres que decidirem até às dez semanas interromper uma gravidez indesejada ou não planeada? Se consideram ou não que o Estado deve garantir a resolução deste problema de saúde em estabelecimento de saúde legalmente autorizado? Se queremos acompanhar a maioria dos países evoluídos da Europa que nas décadas de 70 e 80 criaram leis despenalizadoras e tomaram medidas sérias no campo do planeamento familiar, na informação sobre meios contraceptivos e educação sexual, de modo a pôr fim ao aborto clandestino?
A todas estas perguntas a nossa resposta é, sem dúvida, SIM.
Almerinda Bento
(União de Mulheres Alternativa e Resposta – UMAR)
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