Por Cristina L. Duarte
Quando a Máxima,
a Elle e a Marie Claire, as três primeiras grandes revistas femininas e de moda
publicadas em português, surgiram em 1988, eu era uma jovem socióloga com
apetência pela Comunicação. No final de 1987 tinha começado a escrever num
jornal sobre cultura urbana e imediatamente sobre moda, não só em Portugal, mas
sobretudo deste lado da Europa. Para algumas pessoas, como eu, a Europa começava
aqui. Ao mesmo tempo que escrevia sobre os desfiles dos novos estilistas (recém
formados das escolas de estilismo) comecei a observar de uma forma sistemática
o trabalho de alguns nomes, bem como a interpretar o movimento de moda em
Portugal – bem como o pioneirismo que lhe está associado, e no qual o nome de
Ana Salazar surge como figura de proa. Mas assisti sobretudo ao despontar de designers como José
António Tenente, Lena Aires, Nuno Gama ou Luís Buchinho, entre outros. Hoje já existem várias
gerações (Três? Quatro?) de criadores surgidos no pós 1974.
Antes de todas
as marcas de vestuário – Benetton, Zara, Mango, Massimo Dutti, H&M e por aí
fora - que encontramos hoje em qualquer capital europeia se terem implantado em
Lisboa, tínhamos à nossa disposição exactamente o quê? Os Grandes Armazéns do
Chiado. Ciclicamente, chegam-nos no correio electrónico blocos de imagens que
retratam uma Lisboa ‘antiga’: foi assim que me deparei com uma imagem dos Armazéns
em 1965, àquela data com anúncios na varanda do primeiro andar: «Nunes dos
Santos» e «Preços das Fábricas». Porém, falar dos armazéns que lentamente
vinham a entrar num período de decadência nos anos 80, implica referir que há
um antes e um depois de 1988, isto é, um antes e um depois do incêndio do
Chiado, que deflagrou a 25 de Agosto na Rua do Carmo, uma rua que foi cantada
pelo grupo UHF, e onde em 1976 Ana Salazar abria uma loja Maçã – a primeira já
tinha aberto em 1972, na Avenida da Igreja, fazendo aquilo que Ana define como
«a revolução antes da Revolução». Como ela me conta no livro Ana Salazar – Uma Biografia Ilustrada,
«viviam-se os alegres anos 70 e internacionalmente as pessoas queriam
afirmar-se através do vestuário. Em Portugal, além disso, ano e meio depois da
abertura da Maçã, aconteceu a Revolução de Abril de 74. Aí o êxito avoluma-se
pois as pessoas queriam vestir coisas diferentes e não convencionais. Foi um
período absolutamente áureo do ponto vista comercial e da atitude. Por vezes,
compara-se o papel desempenhado pela Maçã com o dos Porfírios ou da Loja das
Meias. Mas não tem nada a ver. Eu também ía aos Porfírios antes da Maçã (...),
e havia a Delfieu, a loja de uma francesa que fazia coisas simples, mas também
tinha um conceito diferente para a época.» Mas neste vaivém temporal ao longo do
movimento da moda em Portugal, em 1988 ela já tinha a sua revolução em marcha:
primeiro com o nome Harlow e depois, a partir de 1982, com as colecções em seu
nome - Ana Salazar chegou então a
Paris em 1985, onde a Marie Claire francesa considerou a sua loja como um dos
novos templos da moda e a Madame Fígaro afirmou «elle griffe le Portugal».
Continuando. Para
além da Baixa, dos Armazéns do Grandella, dos Grandes Armazéns do Chiado e de
Ana Salazar, para quem gostava de moda (ou de vanguardismos) quais eram as
opções que se tinha no final da década de 80? Eu sempre tive uma que combinava
um pouco aquele gosto da arqueologia (escavar, escavar...), combinado com a
história contemporânea: a descoberta das décadas anteriores, em especial anos
40, 50, ou 60: era a Feira da Ladra aos sábados e às terças-feiras. Não
resolvia tudo, mas ajudava, e os grandes achados eram possíveis quando se
encontravam peças retro a muito baixo
custo. Uma camisa de estampado psicadélico, um vestido bastante rodado dos anos
cinquenta, a par com os vinis, que, na década de 80, começaram a ser
coleccionados por aqueles que se recusavam a dizer-lhes adeus. Bye-bye vinil, olá CD. As emoções
visuais da MTV ajudavam os albúns e os
artistas a saltarem para o pequeno ecrã, criando novas ficções musicais, mas
desta feita a cores e em movimento. Motion
picture, enfim. A influência do meio urbano e industrial fazia-se sentir
neste país à beira-mar plantado que integrou a comunidade europeia em 1986,
aproximando-se do ideal cultural europeu. Se a moda (nacional) se viria a
tornar ou não um ‘movimento perpétuo’, logo se veria. Em 1988 também Carlos Paredes
viu editado em CD o seu disco de 1971, que Edgar Pêra evocou através da sua
linguagem cinematográfica há um par de anos: «Movimentos Perpétuos: Tributo a
Carlos Paredes».
Ainda no final
de 1988 outros músicos, os Madredeus, iriam representar Portugal na Bienal dos
Jovens Criadores do Mediterrâneo, onde marcaria presença também o jovem José António Tenente. Antes mesmo de abrir a sua
primeira loja (em 1990, na Travessa do Carmo), Tenente tinha as suas peças à
venda numa lojinha do Bairro Alto chamada Spera. Aliás, o Bairro Alto no final
da década ia sendo descoberto por novos habitantes que da música ao design
criavam novas ondas no tal movimento de moda.
Logo no final da década de 70 foi a Cliché (fundada por Helena Redondo) a
preencher no Bairro Alto esse papel precursor da nova vaga de oferta urbana,
com a música e a moda de braço dado. Não
muito longe dali, no mesmo ano de 1979, a Manuela Gonçalves - que era de Pintura, mas tinha ganho uma Bolsa
e estudado entre 1972-74 na St.Martins School of Art, em Londres – inaugurou a
sua Loja Branca, ainda hoje a funcionar na Praça das Flores. Para Londres tinham
seguido também Helena Redondo e Ventura Abel, outros dois seleccionados que
chegaram a Lisboa com novas ideias.
Entre 1985-1988,
Manelinha, como é carinhosamente conhecida, passou a assinar a roupa de homem
da loja Jónatas, na Rua da Atalaia - aberta em 1984 por João Borges (Jonas).
Também naquele ano, outra loja de homem abriria
no BA, na Rua da Rosa, «Manuel Alves», que fez depois dupla com o José
Manuel Gonçalves: as propostas masculinas deles eram na verdade únicas, em
qualidade e design. Bom, mas esta história é conhecida.
Andando às
voltas no Bairro Alto de hoje, ninguém diria que as lojas de roupa no final da
década de 80 se contavam pelos dedos de uma mão. E quem tinha prática,
imaginação e vontade de experimentar teria de procurar (ou inventar...) as suas
escolhas de moda nas lojas de tecidos do Chiado - Souza’s, Tátá Rodrigues,
Ramiro Leão, Eduardo Martins, etc. - ou
noutras mais dispersas pela cidade; teria igualmente de deslocar-se à Rua da
Conceição – como hoje – para procurar os botões, os colchetes, as fitas, os
gorgorões e outros acessórios.
Naquela altura,
toda a gente tinha uma amiga modista ou conhecia modistas. As mais criativas
não se limitavam a copiar, procuravam inventar algo novo, de acordo com a
cliente. Fazia-se uma moda «personalizada», mesmo que a partir de «figurinos».
Esta era a tradição herdada dos antigos ateliers
de costura – de casas mais ou menos famosas – desde a década de 20, em que
Madame Vale abria o seu atelier no Marquês de Pombal, rompendo com a centralização
da Baixa, no caminho das Avenidas Novas. Com atelier de confecção e passagens
de modelos, os quais eram feitos a partir das toiles das casas de costura que se iam buscar a Paris, este foi um
dos mais famosos ateliers de Lisboa.
Mas outros lhe sucederam dirigidos por costureiras de renome, como o de Ana
Maravilhas (na Rua Marquês de Fronteira, que trabalhou muito para a loja Ayer),
ou de Maria Luísa Barata (com atelier na avenida engenheiro Duarte Pacheco),
Napoleão (alfaiate que também trabalhava para senhora) e Sérgio Sampaio, com
loja na Avenida da República, junto ao Saldanha. No Porto, dava que falar uma
modista em particular: a Candidinha, famosa pelos seus enxovais e depois roupa
para meninas e adolescentes. Chegou a ter também atelier em Lisboa. Mas no
Porto, na primeira metade da década, a mudança para novos caminhos na moda
nacional tomava também o seu rumo: primeiro com a Cúmplice (fundada por Manuel
Alves, antes de vir para Lisboa, e por António Coelho), depois em 1983 com a
Traço Branco, de Manuela Tojal (1956-2005), na Foz do Douro, e a partir do
final da decada de 80 com uma galeria – a Código – de arte e moda, fundada por um
trio de amigos, Anabela Baldaque, Manuela
Pinto e Amândio Pinto, na Rua da Torrinha. Ali programavam-se exposições, ao
mesmo tempo que se expunha roupa de jovens criadores de moda de todo o país. Ainda
em Dezembro de 1988, haveria de surgir no Porto aquela que seria a primeira
Zara em Portugal, e que foi também o início da internacionalização do grupo
galego, a Inditex. A esta sucederam-se muitas outras lojas que representaram
outro fenómeno: o da massificação do vestuário aliada à democratização da moda (como
uma segunda revolução pós-74), nesta escala, sem concorrentes e precedentes em
Portugal, onde a indústria e o design de moda nunca conseguiram se implantar da
mesma forma e com a mesma agressividade.
Voltamos a
Lisboa, para uma investida na Praça de Touros, onde em plena arena se apresentou
a terceira edição das Manobras (1988), uma manifestação cultural que trouxe a
moda para a rua, fazendo desta um palco experimental para quem tinha tesouras
afiadas e vontade de experimentar e mostrar novos trabalhos. Durante 1986 e
1987 a associação Manobras ocupou o Largo do Século, depois a arena, e entrou
de seguida em pousio, para voltar em 1994, ao Largo do Século, que foi onde, por
exemplo, se estreou Dino Alves com
uma intervenção designada «Pós de Maio». Hoje, o criador continua a desenvolver
o seu trabalho em atelier, mas sem comercializar as suas criações em loja.
Hoje o centro
comercial, como qualquer rua, está acessível todos os dias da semana, só que dia
e noite. Versão moderna dos grandes armazéns – quer fossem os do Chiado ou do
Grandella – os centros constituem uma espécie de climax do processo urbano, um
verdadeiro laboratório social, onde a comunidade reforça a coesão como nas
festas e romarias.
Fazer a história
do consumo de moda nas duas últimas décadas é percorrer assim a Lisboa das
lojas históricas – a Loja das Meias (fundada no Rossio, em 1899, e de onde
desapareceu recentemente, para se encontrar apenas nos centros, ou em Cascais,
na Avenida Valbom); a Casa Africana; os Porfírios (que surgiram primeiro no
Porto, em 1925, onde vendia exclusivamente meias, e só a partir dos anos 40 a
empresa de Porfírio de Araújo, pai e três filhos, se instalaria em Lisboa, onde
abriu uma segunda loja ao lado da primeira, em 1965, com moda para jovens); a
Delfieu, de Claudine Battesti; a Tara, uma primeira loja em Cascais (em 1963,
com uma colecção de malhas) de Teresa Sande e Castro, e depois em Lisboa, onde
mães e filhas faziam compras juntas; a Migacho (1970) de Maria da Graça Pavão,
filha de Pedro Rodrigues Costa (Loja das Meias), que abriu várias lojas,
incluindo uma em Cascais; a Traffic e a Parfois; a Stivali (que começou por ser
uma sapataria que logo se demarcou pela qualidade e pelo design das propostas);
Augustus, do costureiro António Augusto, que abriu a sua primeira loja em
Luanda e depois abrirá em Lisboa, em 1975, e mais tarde uma outra, ambas em
centros comerciais.
Qual é agora o
lugar do consumo? É a vida quotidiana, como sistema de interpretação – escrevia
Jean Baudrillard ainda nos anos 70. A vitrina, a montra, é um foco nas nossas
práticas urbanas e um lugar consensual da comunicação, através da qual a
sociedade se tornou homogénea graças à lógica espectacular da Moda. A festa
vestimentar, o prazer do novo, associados à nova arte de viver e ao culto
narcisista do corpo foram evoluindo ao longo destas últimas décadas, em que a
ética da beleza é também a da moda. Mas como nos dirá a filosofia, a ética é
estar à altura do que nos acontece. E se as dinâmicas sociais não param, a moda
também não. Longa vida para a Máxima, que soube assumir desde o início um
estilo. E termino em jeito de homenagem a Yves Saint-Laurent, o criador que
soube dar às mulheres o que elas precisavam na devida altura: «Sempre acreditei
que a moda não serve apenas para tornar as mulheres mais bonitas, mas também,
para que se sintam mais confiantes.» E elas são cada vez mais confiantes,
porque acreditam na construção e afirmação da sua imagem.
Revista Máxima, 2008