14.6.07

Génese e Cinema - Parte II

O Feminismo de Anatomia do Inferno

No filme de Catherine Breillat Anatomia do Inferno a narrativa não se apresenta de uma forma fluida. É temporalmente delimitada e circunscrita a cinco noites apenas, que se sucedem através de cortes em que cada uma é anunciada graficamente.

O Encontro


Num lugar onde uma forte energia libidinal se dissemina, onde corpos se roçam, tocam e dançam ao som de música electrónica, está uma mulher. Bela e graciosa nas suas roupas branco e rosa, encostada e amparada por uma parede, perscruta o espaço que a envolve e sente a indiferença e a dor perante a invisibilidade que o seu corpo evoca àqueles que estão em seu redor, homens que se desejam apenas entre si. Nem o seu olhar de afronta, nem o modo como, ao percorrer o espaço, o seu corpo bate com intenção nesses corpos masculinos parece exercer qualquer tipo de reacção apaixonada nesses homens. É o completo desinteresse. Esta é a primeira alegoria de Anatomia do Inferno. Se deixarmos de lado o conteúdo marcadamente (homo)sexual dessas imagens é possível transpô-las para outro contexto social, político e económico. O homem continua, apesar das conquistas do feminismo nas últimas décadas, por todo o mundo a dominar o espaço público. A mulher, essa, é confinada a outros espaços, ao espaço da Casa. E é como iremos ver, no espaço da Casa, e na cama, que a Mulher inicia o Homem. Reside aqui inelutavelmente um dos elementos feministas do filme ao nível do conteúdo.
A Mulher sabe que fora do espaço da discoteca esses homens também têm sexo entre si. Aliás, os segundos iniciais de Anatomia do Inferno correspondem a uma cena de sexo oral explícito entre dois homens num descampado. Pouco depois é na discoteca que o tempo de acção tem lugar. É aqui que a Mulher (Amira Casar) perante a indiferença masculina, e não somente sexual, procura refúgio nos lavabos e decide cortar os pulsos com uma lâmina. É aqui que ele, o Homem (Rocco Siffredi), a impede de completar a tragédia. É assim que se conhecem. O espectro da morte e do sangue serve de mote para a sua apresentação. É ainda neste espaço que decorre um dois diálogos mais reveladores de todo o filme:


Homem: Why did you do that?
Mulher: Because I’m a woman.
Homem: I don’t understand.
Mulher: You understand very well.

Nesta última frase, «you understand very well», tem-se logo um pequeno indício de quem terá efectivamente o poder neste duelo, a Mulher, ela tem o poder derivado do conhecimento. Ela sabe mais que ele.
Depois de saírem da discoteca, o Homem decide levar a Mulher à farmácia para que o seu pulso receba curativo. É depois de saírem deste espaço e caminharem na noite que o acordo entre ambos é estabelecido. Mas antes disto acontecer, e no seguimento da pergunta feita pelo homem, «what do you want to do now?», acontece mais uma cena de sexo oral explicito, desta feita entre a Mulher e o Homem. A expressão da Mulher é de afronta e provocação. Portanto, apesar de tudo indicar que a preferência sexual daquele Homem é dirigida a outros homens ele responde afirmativamente à investida da Mulher. A dúvida fica instalada. É depois desta cena que ela lhe propõe:


Mulher: I’ll pay you.
Homem: To what end?
Mulher: To find out. You don´t like women. You can look at me. I mean, impartially.
Homem: What’s this about?
Mulher: Just that. Watch me where I’m unwatchable. No need to touch me. Just say what you see.
Homem: It’ll cost you a lot.
Mulher: I’ll pay you.


É nestes termos que o acordo é estabelecido. Mais uma vez é a mulher que tem o poder, é ela que propõe o acordo, é ela que paga. Paga para que o Homem veja aquilo que não deve ser visto e que remete indubitavelmente para a nudez feminina, o segredo, para aquilo que em termos religiosos (Livro dos Genesis) é identificado com a obscenidade do corpo feminino. Em Anatomia do Inferno a convenção é pois invertida, ou seja, a personagem do Homem é construída enquanto objecto sexual antes da Mulher.


Catarina Frade Moreira

1 comentário:

Valter A. Rodrigues disse...

É notável a proximidade entre este filme e um belo texto de Marguerite Duras, A doença da morte. Neste, uma mulher permanece deitada em uma cama, nua, enquanto o homem caminha pelo quarto. Ao fundo, no fora, o barulho do mar. A mulher fala. Todo o texto é construído sobre a impossibilidade de o homem amar a mulher.
Um belo filme de Breillat que tem recebido críticas bastante reativas da população masculina, sempre demasiadamente falocrática. O que incomoda em Breillat (em seus outros filmes acontece a mesma coisa) é seu erotismo construído da perspectiva da mulher.