Eva só conheço duas: a do “Paraíso Perdido” e do “Pecado Original” e uma Eva Cantarella que se dedica ao estudo da Mulher Romana. Talvez por esta última ser Eva, e talvez por eu estudar a Civilização romana, resolvi não me centrar exclusivamente na Eva do Éden e do Génesis, e pensar também um pouco na mitologia do que genericamente se designa como “Antiguidade Clássica”, no universo feminino e sua representação, segundo o que nos é dado conhecer pelos escritos que dessa época existem.
Na Grécia Antiga, racionalizada, apenas duas mulheres Circe e Medeia têm poderes mágicos ou sobrenaturais que espelham, de algum modo, a memória de um mundo ancestral e arcaico, onde o Homem era ainda dominado por medos do desconhecido (quem sabe se a Eva das Sagradas Escrituras não seria também uma maga dotada de conhecimentos sobre a árvore do “bem” e do “mal” e sobre as poções que dela poderia extrair, de que a maçã é apenas a metáfora.)
As narrativas mitológicas centradas em mulheres (como nos homens aliás) são, portanto, veículos de interpretação de um universo que se pretende descritível, narrável e, deste modo, enquadrados numa “religião racional”.
Entre os Titãs, ou “deuses primitivos” encontra-se Mnemosine, que significa “Memória”. Mnemosine era filha de Geia (que personifica a terra em formação, gerada do nada, mãe e esposa de Úrano, com o qual constitui o primeiro casal divino) e mãe das nove Musas. Entre os “deuses supremos” do Olimpo temos a possessiva e ardilosa Hera, a poderosa Atena, a caprichosa Afrodite, a protectora Artemisa e a discreta Héstia. Estas personagens femininas, ao contrário da Eva bíblica, desempenham um papel fundamental na trama que se constrói entre as entidades divinas e entre estas e os Humanos.
O estatuto de Eva é, contudo, mais ambíguo, pois a sua personagem não tem contornos definidos na narrativa bíblica. Nascida (como, aliás, algumas divindades da mitologia greco-romana) do corpo de um homem que, apesar de ter podido presenciar o divino antes do “Pecado Original”, não o é, Eva é apenas a “Mulher”. Sendo num primeiro momento agente é ela que provoca com a sua curiosidade o “Pecado Original” rapidamente se transforma num ser cuja função exclusiva é procriar, sendo que essa função é ela própria um estigma, pois um dos castigos que lhe é infringido é “a dor da gravidez”. Torna-se também num mero objecto da dominação masculina, pois o anátema que sobre ela caiu foi proferido pela voz divina, que lhe é alheia e superior: “terás desejo ardente de teu esposo, e ele te dominará”.
Ao contrário, na mitologia greco-romana as divindades femininas são afirmativas, agentes ou adjuvantes em todo o enredo das (es)/histórias que se geram em seu torno: Hera, filha dos Titãs Oceano e Tétis, é o centro de uma trama onde o ciúme e a vingança obtida com uma ira implacável chegam a perturbar o próprio “deus dos deuses”. No entanto, pese embora a sua personalidade, ou por isso mesmo, ela é também a protectora das casadas ou das parturientes, tendo gerado Ilitia, que acabará por zelar por estas últimas. Atena, a virgem, que não foi gerada por uma mulher, porque brotou da cabeça de Zeus, é também feroz. Protectora da agricultura e das actividades artesanais, esta deusa tudo fará, contudo, para salvar a “Cidade”, mesmo que seja através da guerra. A deusa do Amor e da Beleza Afrodite é, por sua vez, capaz de todos seduzir, deuses ou mortais.
Estas divindades, embora todas filhas, irmãs ou amantes de Zeus, desempenham, não obstante, papéis diferenciados, autónomos, interferindo em quase todos os aspectos da vida, tal como acontece com as “deusas menores”. Apesar dessa filiação/irmandade mimetizar, de certa forma, a situação bíblica, pois também Eva nasce da costela de Adão e dele se torna concubina, não tem qualquer equivalência no que diz respeito ao protagonimo assumido pelas personagens.
De salientar, contudo, que o papel desempenhado pelos seres femininos na mitologia grega se contrapõe, de algum modo, à condição a que é remetida efectivamente a mulher. Já em Roma, que adoptou e adaptou os deuses gregos, a situação da mulher não tem um aspecto tão intimista. Embora submetidas ao poder patriarcal (do omnipotente paterfamilias ou seu sucedâneo o marido ou o sogro de que poderia tornar-se “filha” através do matrimónio), as mulheres romanas assumem um desempenho que poderemos considerar mais extrovertido, mais visível ou mesmo extravagante, como acontecia com algumas delas, normalmente priveligiadas.
As mulheres romanas, quer as divinas, quer as humanas, participam, portanto, de uma sorte onde se envolvem, desde um primeiro momento, os dois sexos, na igualdade possível... Eva, essa, participará apenas do devir solitário a que quiseram condenar, no mundo judaico-cristão, até praticamente os nossos dias, a Mulher!
Filomena Barata (arqueóloga)
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